Recordo-me como se fosse hoje, agora. O meu palato saboreia, ainda, o tempero do fumeiro tradicional de vinhais, onde não havia artifícios nem invenções.
Na lareira, esmorecia o calor à medida que se consumia a lenha. Eram horas de ir para a cama que a noite era fria e cintilante de estrelas.
No quarto que me foi destinado, uma cama de casal de madeira de castanho sem grandes ornamentações. Uma mesinha de cabeceira e um guarda fatos da mesma madeira e com a mesma pretensão do restante mobiliário. Era simples e funcional.
Ao lado do quarto ficava a casa de banho, básica, com o estritamente necessário ao conforto de um local recatado. Não tinha água quente. Essa, aquecia-se ao lume, no lato existente para o efeito.
Rapidamente enfiei o pijama mais quente que tinha e enfiei-me na cama onde me senti quase esmagada, tal era o peso dos cobertores de lã com que me cobria. Os lençóis, bordados pelas mãos hábeis da minha tia, mal impediam a aspereza do cobertor de pura lã de ovelha, tecido em tear manual.
Pensei: "Como vou conseguir dormir com este peso todo em cima?" Tinha os pés frios. Aninhei-me o melhor que pude debaixo de todos aqueles cobertores e tentei esquecer a saudade que sentia da minha vida anterior.
O sono, apesar do cansaço, não vinha. Ouvia os estalidos das madeiras antigas amplificados pela minha solidão. Pela pequena janela espreitava um raio de luar, da rubicunda e maravilhosa lua em noite de lobisomens.
Na ténue claridade do aposento, imaginava sombras e lagartixas venenosas e assassinas...
Quase sem conseguir respirar de tão abafada que estava, sentia a ponta do nariz enregelada. Geava dentro do quarto, tinha a certeza disso. Fechei os olhos rendida à exaustão.
"Cocorocó! Cocorocó!" Senti um baque no peito, o coração a correr os 100 metros obstáculos sem preparação nenhuma.
"Que coisa é esta?" O galo madrugador, cantava feliz a anunciar a alvorada. Levei algum tempo a reconhecer o som e a serenar os batimentos cardíacos. Olhei para o relógio de pulso, presente do meu pai, do qual nunca me separava e vi que eram as quatro horas da manhã.
Desalentei. "Agora que eu tinha conseguido, finalmente, adormecer..."
Toquei com um pé no outro e senti-o gelado, tão gelado que até me arrepiou. Verifiquei que o outro estava igual. Embrulhei-me em posição fetal na tentativa vã de me aquecer. Como era possível que com tantos cobertores em cima de mim, não conseguisse manter-me quente? Dei por mim a contá-los e descobri que eram oito. Oito cobertores!
Fiquei abismada e fria. Por mais que cerrasse os olhos convictamente, não adormecia. As horas foram passando lentamente.
Perto das oito da manhã oiço barulho na cozinha. No quarto, o raio de lua fora substituído por um tímido vestígio de sol.
Decidi levantar-me para aquecer os pés. Vesti-me sem grandes cuidados e abri a torneira do lavatório que soluçou sem gota de água, uma, duas, três vezes... apenas molhei os dedos indicadores para fingir lavar os olhos e a boca. Arrepiei-me até aos ossos com a friúra da água.
Voltei ao quarto e calcei dois pares de meias e as únicas botas que tinha. Abri a janela e arregalei os olhos de espanto. "Lindo! Ai, tão lindo!"
Dos telhados, das árvores, dos arbustos, pendiam pequenos pingentes de gelo que o sol transformava em diamantes refletores de luz e de todas as cores do arco-íris. No caminho de terra uma tal camada de gelo que poderia, se quisessem, fazer um bailado.
Não sei quanto tempo ali estive. Fui acordada pelo cheiro irresistível do chocolate quente. Segui-o instintivamente até ao lar.
"Bom dia, avó!"
"Bom dia, filha. Dormiste bem? Tiveste frio?"
Era um novo dia de muitos...
Maria Videira (Mara Cepeda)
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