segunda-feira, 28 de outubro de 2013

O castanheiro e a guerra

Natália nasceu em novembro de 1935, quatro anos antes do início da II Guerra Mundial, numa pequeníssima aldeia do concelho de Vinhais, em Trás-os-Montes.
Tinha, portanto, dez anos quando a guerra acabou. Diz ela que não se recorda de nada relacionado com a guerra, apenas da fome que grassava no minúsculo mundo que conhecia. Nem sequer se lembra de alguma vez ter chegado a Vinhais. Ia com a mãe, que era cesteira, pelas aldeias em redor sempre que havia trabalho. Não gostava de a acompanhar, mas como era muito pequena, não tinha outro remédio. Sentia-se assoberbada. Era muito tímida e ao mesmo tempo bastante inteligente. Umas vezes era muito bem tratada e acarinhada, outras relegada ao seu lugar de filha da cesteira, gente simples e operária. De tudo se apercebia na sua tenra idade e isso marcou-a. Deixou de acompanhar a mãe logo que se tornou capaz de fazer um caldo, ainda a guerra não tinha acabado.
Desse e de outros tempos, recorda-se das muitas crianças da aldeia, esfomeadas, despidas e descalças.
Disso, recorda-se com tristeza porque era uma delas, apesar de alguma coisa "mais rica".
Ainda sente o frio a enregelar-lhe a alma, vestida de trapos, com remendos sobre remendos, mas nunca andou descalça. Sempre teve um casaco remendado para vestir por cima do velho vestido. Tinha os socos que a mãe nunca lhe deixou faltar. Um vestido de chita novo pela Páscoa. As meias, que cedo aprendeu a tricotar, eram feitas da rude lã das ovelhas e cerzidas até não ser possível mais cerzi-las. Ela tinha meias. Outros tinham os pés nus, vermelhos e gretados, tão frios como a geada que caía quase todas as noites de inverno. Alguns, poucos, tinham botas de cabedal e as mesmas meias de lã de ovelha, menos puídas.
Na lareira ardiam as urzes, as giestas, os galhos que se apanhavam pelos caminhos e os paus de uma ou outra árvore que caía de velha ou era abatida por uma tempestade e que se traziam às costas ou a cavalo num qualquer burrico faminto e quezilento. Poupava-se a lenha mais do que o pão negro que nem todos tinham.  
Não tinha fartura mas tinha sempre um bocado de pão centeio, amargo como a vida, quase intragável, mas coberto de mel, quando a fome era tanta que já não havia mau pão. Quem, naquele tempo, naquele lugar, se podia dar ao luxo de comer um bocado de trigo? 
Nunca lhe faltou um punhado de figos secos, algumas nozes, um caldo de couves e batatas, um ovo de vez em quando, um naco de carne gorda, um cibo de unto para temperar o caldo e tornar menos intragável o pão. Nem todos tinham a sua sorte.
Recorda-se, mal, do racionamento de alimentos. Ela e a mãe tinha direito a um tudo nada de açúcar e sal, uma malguinha de arroz, um bocadinho de queijo... Aquilo a que cada família tinha direito baseava-se no número de elementos que possuía. Por mais que fossem, se não houvesse dinheiro, não havia senhas. A miséria era tanta que é impossível de esquecer.
Embora neutral, Portugal e o seu povo sentiram a guerra mesmo sem saber que o mundo estava em guerra. Os ecos chegavam às aldeias transmontanas aos pinguinhos. Os mais pobres tinham outras preocupações, sendo a mais premente, não morrer à fome. A vida seguia o seu triste e desamparado rumo para a maioria da população. Natália não se recorda da guerra, nem sabia se era a segunda ou a primeira ou a vigésima.    
Do que se recorda com carinho, é do castanheiro da fotografia que ilustra este pequeno texto. Era dentro do tronco oco desta árvore ancestral que ela e a restante garotada, acendiam o lume com os guicinhos que iam apanhando por ali à volta, ou os que arrancavam do próprio castanheiro para se aquecerem nos dias de inverno. Ali se abrigavam da chuva. Ali assavam batatas e cebolas que comiam como lauto manjar.
Não se lembra de quando o castanheiro ficou neste estado. Também não era da lembrança da sua mãe. Sempre o conheceu assim, esventrado, queimado, mas vivo e a dar castanhas. Sempre se admirou com a resistência deste gigante e nunca passa junto dele que não o reverencie e fale dos seus tempos de criança em que se sentia aconchegada e quente como se fosse o colo da sua mãe.

Maria Videira (Mara Cepeda)

quarta-feira, 23 de outubro de 2013

Avô com certeza, bisavô talvez...

 
Belo! Que palavras poderei usar para descrever esta maravilhosa árvore?
Que artista esculpiu tamanha maravilha, senão um qualquer Michelangelo, travestido de chuva e vento, de neve e sol, de frio e calor?
É velho, sim, tão velho que tantas crianças por ele passaram e com ele palraram que a sua canção, em noites de vento, embala as almas envoltas em tormentos. 
 
Maria Videira (Mara Cepeda) 

Castanheiros, Brito de Baixo

A minha mãe espreita os ouriços. Diz que são pequenos. Será que estas chuvas outonais ainda poderão ajudar no crescimento das castanhas?

Belas árvores. Para mim, são belas em qualquer estação do ano, até mesmo no inverno, completamente despidas.

Souto novo, ainda "imberbe", começa a dar as primeiras castanhas. A minha mãe, a meu pedido, posa junto de um castanheiro mais velho mas, ainda assim, jovem se comparado com outros

Castanheiros e paisagem

Os nossos campos, mesmo ao abandono, refletem a beleza simples e despretensiosa dos homens e mulheres que trabalham o campo com o carinho rude dos amores verdadeiros e ancestrais.

Qual esculturas de artesão enfurecido, ei-los, esventrados... continuam, no entanto, a dar a sua dádiva: castanhas.

 
 
      
Numa curva do caminho, belo, o castanheiro impõem-se com audácia, sem julgar nada, do que na vida se passa. Na paisagem crua, coberta de negras nuvens, a dureza da vida do agricultor que tem de apanhar as castanhas, sobe e desce pequenas e íngremes "montanhas".
 

Maria Videira (Mara Cepeda)

terça-feira, 22 de outubro de 2013

A fonte

 
Esta fonte, recordo-me dela, menina ainda, cheia de água no inverno e quase seca no verão. Hoje está quase irreconhecível, abandonada. É tempo de fartura (de água, felizmente) na minha aldeia, tão pobre de gente. Tão bela e tão só, qual Moura Encantada.

Quantas vezes aqui vim, madrugada dentro em noites quentes de verão, dois cântaros de esperança e um copo de lata na mão.

No fundo, um quase nada de água fresca, límpida, pura, brotando da rocha como dádiva divina. A diferença entre a morte e a vida, entre a sede e a saciedade...

Que saudades tenho desses tempos tão difíceis! Era tão feliz e não sabia!

Tinha a liberdade dos ventos que correm pelos montes em tropelias tais, que só Saci Pererê se lhes assemelha, neguinho arretado, um diabinho, mas tão bom que apenas se apercebia da dor alheia, retornava para compor as pequenas maldades que havia espalhado, aqui e ali...

A felicidade só se podia comparar à de nascer cravelina vermelha, no alto da Fraga dos Cães, namorada contemplativa do Castro Mau, assustador, mas com a serenidade da noite mais profunda, onde apenas o rumorejar da água que incessante passa, se sentia.

Já não sou essa flor delicada e selvagem, tão frágil que uma mão pequenina de criança a arranca. Sou agora, mais velha, menos pura, conspurcada pelo simples viver do dia a dia, trémulo, cruel como uma cama vazia.

A vida transforma-nos em seres desconfiados, enconchados... sorrisos caros e poucos, bons dias sorumbáticos e boas tardes mal humoradas porque faz sol e está calor, porque faz frio e está a chover, porque... sei lá... qualquer coisa...

A visão da fonte de Trás-do-Monte, tão só como me sinto, aniquila-me. Somos gémeas, irmãs siamesas na solidão, na incapacidade de voltar a renascer água pura, de matar a sede e consolar a secura que me vai na alma triste.

Esta fonte, recordo-me dela... tanto tempo passou, tia! Tanto tempo que apenas se esvai como areia fina entre os meus dedos, que agora são mãos abertas e ávidas em busca dos meus segredos.

O meu Saci Pererê envelheceu. É agora preto velho de uma perna só, sentado ao lume, com o cachimbo apagado entre os lábios ressequidos, sedentos da tua água, Fonte!

Mãe, dá-me colo! Estou só como um açor que busca a sua presa, na imensidão deserta do espaço que sobrevoa. Não vês a minha mão a procurar a tua? Que se passa? Não me queres de volta ao teu ventre? Nem por magia poderosa do teu coração, mãe, poderia voltar a ser em ti, mas, dá-me o aconchego do teu carinho único. É disso que necessito, mais do que da água límpida da fonte.

O tempo passou avó. Tão depressa que os teus cem anos foram um breve suspiro. Não ias gostar de ver as tuas coisas agora. A tua casa caiu, avó. A arca onde nos guardavas a todos, desfez-se na voragem dos dias de chuva inclemente. As minhas sandalinhas cor-de-rosa salpicadas de pequenas flores pintadas à mão, não sei delas. Os teus lençóis de linho com monograma estão puídos. As fotografias dos teus netos, levou-as a humidade. As fitas com que me apertavas o cabelo loiro e encaracolado sumiram-se na loja dos porcos, levadas por uma aragem travessa.

E volto à fonte, mais uma vez, sem púcaro, sem cântaros, sem sede de água... roubo estas duas fotografias (más, diga-se) e fico imensamente triste por me aperceber de tudo o que se perde se não tivermos a capacidade de captar o momento, aquele fugaz momento em que um anjo te roça o rosto com a delicadeza das suas asas puras...

(Saci Pererê, é um ente mitológico das lendas brasileiras. Não posso, nem quero, perder as memórias da minha vida no Brasil. Aqui deixo este moleque danadinho e estouvado.)

Mara Cepeda