terça-feira, 22 de outubro de 2013

A fonte

 
Esta fonte, recordo-me dela, menina ainda, cheia de água no inverno e quase seca no verão. Hoje está quase irreconhecível, abandonada. É tempo de fartura (de água, felizmente) na minha aldeia, tão pobre de gente. Tão bela e tão só, qual Moura Encantada.

Quantas vezes aqui vim, madrugada dentro em noites quentes de verão, dois cântaros de esperança e um copo de lata na mão.

No fundo, um quase nada de água fresca, límpida, pura, brotando da rocha como dádiva divina. A diferença entre a morte e a vida, entre a sede e a saciedade...

Que saudades tenho desses tempos tão difíceis! Era tão feliz e não sabia!

Tinha a liberdade dos ventos que correm pelos montes em tropelias tais, que só Saci Pererê se lhes assemelha, neguinho arretado, um diabinho, mas tão bom que apenas se apercebia da dor alheia, retornava para compor as pequenas maldades que havia espalhado, aqui e ali...

A felicidade só se podia comparar à de nascer cravelina vermelha, no alto da Fraga dos Cães, namorada contemplativa do Castro Mau, assustador, mas com a serenidade da noite mais profunda, onde apenas o rumorejar da água que incessante passa, se sentia.

Já não sou essa flor delicada e selvagem, tão frágil que uma mão pequenina de criança a arranca. Sou agora, mais velha, menos pura, conspurcada pelo simples viver do dia a dia, trémulo, cruel como uma cama vazia.

A vida transforma-nos em seres desconfiados, enconchados... sorrisos caros e poucos, bons dias sorumbáticos e boas tardes mal humoradas porque faz sol e está calor, porque faz frio e está a chover, porque... sei lá... qualquer coisa...

A visão da fonte de Trás-do-Monte, tão só como me sinto, aniquila-me. Somos gémeas, irmãs siamesas na solidão, na incapacidade de voltar a renascer água pura, de matar a sede e consolar a secura que me vai na alma triste.

Esta fonte, recordo-me dela... tanto tempo passou, tia! Tanto tempo que apenas se esvai como areia fina entre os meus dedos, que agora são mãos abertas e ávidas em busca dos meus segredos.

O meu Saci Pererê envelheceu. É agora preto velho de uma perna só, sentado ao lume, com o cachimbo apagado entre os lábios ressequidos, sedentos da tua água, Fonte!

Mãe, dá-me colo! Estou só como um açor que busca a sua presa, na imensidão deserta do espaço que sobrevoa. Não vês a minha mão a procurar a tua? Que se passa? Não me queres de volta ao teu ventre? Nem por magia poderosa do teu coração, mãe, poderia voltar a ser em ti, mas, dá-me o aconchego do teu carinho único. É disso que necessito, mais do que da água límpida da fonte.

O tempo passou avó. Tão depressa que os teus cem anos foram um breve suspiro. Não ias gostar de ver as tuas coisas agora. A tua casa caiu, avó. A arca onde nos guardavas a todos, desfez-se na voragem dos dias de chuva inclemente. As minhas sandalinhas cor-de-rosa salpicadas de pequenas flores pintadas à mão, não sei delas. Os teus lençóis de linho com monograma estão puídos. As fotografias dos teus netos, levou-as a humidade. As fitas com que me apertavas o cabelo loiro e encaracolado sumiram-se na loja dos porcos, levadas por uma aragem travessa.

E volto à fonte, mais uma vez, sem púcaro, sem cântaros, sem sede de água... roubo estas duas fotografias (más, diga-se) e fico imensamente triste por me aperceber de tudo o que se perde se não tivermos a capacidade de captar o momento, aquele fugaz momento em que um anjo te roça o rosto com a delicadeza das suas asas puras...

(Saci Pererê, é um ente mitológico das lendas brasileiras. Não posso, nem quero, perder as memórias da minha vida no Brasil. Aqui deixo este moleque danadinho e estouvado.)

Mara Cepeda

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