Quantas vezes aqui vim, madrugada dentro em noites quentes
de verão, dois cântaros de esperança e um copo de lata na mão.
No fundo, um quase nada de água fresca, límpida, pura,
brotando da rocha como dádiva divina. A diferença entre a morte e a vida, entre
a sede e a saciedade...
Que saudades tenho desses tempos tão difíceis! Era tão feliz
e não sabia!
Tinha a liberdade dos ventos que correm pelos montes em
tropelias tais, que só Saci Pererê se lhes assemelha, neguinho arretado, um
diabinho, mas tão bom que apenas se apercebia da dor alheia, retornava para
compor as pequenas maldades que havia espalhado, aqui e ali...
A felicidade só se podia comparar à de nascer cravelina
vermelha, no alto da Fraga dos Cães, namorada contemplativa do Castro Mau,
assustador, mas com a serenidade da noite mais profunda, onde apenas o
rumorejar da água que incessante passa, se sentia.
Já não sou essa flor delicada e selvagem, tão frágil que uma
mão pequenina de criança a arranca. Sou agora, mais velha, menos pura,
conspurcada pelo simples viver do dia a dia, trémulo, cruel como uma cama
vazia.
A vida transforma-nos em seres desconfiados, enconchados...
sorrisos caros e poucos, bons dias sorumbáticos e boas tardes mal humoradas
porque faz sol e está calor, porque faz frio e está a chover, porque... sei
lá... qualquer coisa...
A visão da fonte de Trás-do-Monte, tão só como me sinto,
aniquila-me. Somos gémeas, irmãs siamesas na solidão, na incapacidade de voltar
a renascer água pura, de matar a sede e consolar a secura que me vai na alma
triste.
Esta fonte, recordo-me dela... tanto tempo passou, tia!
Tanto tempo que apenas se esvai como areia fina entre os meus dedos, que agora
são mãos abertas e ávidas em busca dos meus segredos.
O meu Saci Pererê envelheceu. É agora preto velho de uma
perna só, sentado ao lume, com o cachimbo apagado entre os lábios ressequidos,
sedentos da tua água, Fonte!
Mãe, dá-me colo! Estou só como um açor que busca a sua
presa, na imensidão deserta do espaço que sobrevoa. Não vês a minha mão a
procurar a tua? Que se passa? Não me queres de volta ao teu ventre? Nem por
magia poderosa do teu coração, mãe, poderia voltar a ser em ti, mas, dá-me o
aconchego do teu carinho único. É disso que necessito, mais do que da água
límpida da fonte.
O tempo passou avó. Tão depressa que os teus cem anos foram
um breve suspiro. Não ias gostar de ver as tuas coisas agora. A tua casa caiu,
avó. A arca onde nos guardavas a todos, desfez-se na voragem dos dias de chuva
inclemente. As minhas sandalinhas cor-de-rosa salpicadas de pequenas flores
pintadas à mão, não sei delas. Os teus lençóis de linho com monograma estão
puídos. As fotografias dos teus netos, levou-as a humidade. As fitas com que me
apertavas o cabelo loiro e encaracolado sumiram-se na loja dos porcos, levadas
por uma aragem travessa.
E volto à fonte, mais uma vez, sem púcaro, sem cântaros, sem
sede de água... roubo estas duas fotografias (más, diga-se) e fico imensamente
triste por me aperceber de tudo o que se perde se não tivermos a capacidade de
captar o momento, aquele fugaz momento em que um anjo te roça o rosto com a
delicadeza das suas asas puras...
(Saci Pererê, é um ente mitológico das lendas brasileiras.
Não posso, nem quero, perder as memórias da minha vida no Brasil. Aqui deixo
este moleque danadinho e estouvado.)
Mara Cepeda
Sem comentários:
Enviar um comentário