Menina como era, não sabia o significado da
palavra pobreza. Apenas sabia que me faltava quase tudo porque o sentia quando
o meu estômago dava sinal ou quando a fraqueza era tão grande que só apetecia
dormir sob um raiozinho de sol.
Andava na escola pela primeira vez. Outubro,
outono, sabia porque a professora ensinara o nome da "estação do
ano?" "Sim. Era isso... Era o ano repartido de três em três
meses."
Já ouvira as pessoas da aldeia a falarem da
primavera, do verão, do outono e do frio do inverno. Só tinha cinco anos. Nunca
ligara muito ao que diziam. Gostava de correr e saltar, cair e levantar,
chapinhar nas poças de chuva e saltaricar atrás dos passarinhos recém saídos
dos ninhos...
Era feliz apesar de tudo o que não tinha e que
nem sabia que existia.
Corria o ano de 1940. Fisicamente, a pequena
localidade onde vivia, ficava longe da guerra cujos ecos não me chegavam.
Os velhos andavam com os olhos mortiços, sem
esperança, vivendo um dia de cada vez, com a certeza de que ao dia seguiria a
noite.
Eu não entendia nada daquilo. A minha mãe
apenas dizia:
- "Oh filha, lá para esses países frios
anda uma guerra muito má, onde já morreram muitas pessoas. Há muita miséria,
muita fome, muitos filhos sem pai. Sabes, o Presidente do Conselho, o Dr.
Salazar, tira-nos tudo para mandar para lá. Ouvi isso lá em casa do fidalgo.
Falavam muito baixinho, ele e o doutor de Vinhais. Não entendo muito bem essa
coisa da guerra. Não sei porque é que andam em guerra. Sei que cada vez é mais
difícil arranjar um cibo de pão... Aqui, se não fosse eu, os da Zulmira já
tinham morrido à fome... Graças a Deus, lá me vão pagando as cestas com alguma
coisa que se coma."
Com os meus cinco anos, nada do que a minha
mãe dissesse, na sua simplicidade e ignorância, me fazia perder muito tempo a
pensar. Tocava-me a palavra fome, que a sentia, às vezes, poucas. Sabia que os
meus amiguinhos tinham mais fome do que eu. Esbugalhavam os olhos para o meu
carolo de pão negro e azedo, lambuzado de unto e eu acabava por lho estender,
repartido aos pedacinhos por cada um deles. Mal dava para uma dentada, mas ia
enganando aquela dor de barriga que não se esquecia de doer.
- "Mãe, tenho fome!"
- "Ainda agora te dei um cibo de pão,
filha!"
- "Dei-o ao Zé, à Ana, à Maria, ao João
e aos filhos da tia Quica.”
Não tiravam os olhos de mim...
Do fundo da arca de castanho saía uma côdea
dura, negra, amarga como a vida. A ela, a mãe juntava um pedacinho de carne
gorda, assada na grelha à lareira. Que bem me sabia quando não era rançosa!
Comia calada, quieta. Olhar preso na ténue
chama dos poucos paus que ardiam lentamente no lar. Era preciso poupar lenha.
"Quem não poupa lume nem lenha, não
poupa coisa que tenha."
O frio ainda não se instalara. Chovia, isso
sim, muito, encharcando tudo, enlameando tudo.
Lusco-fusco, regressavam a casa os últimos
trabalhadores enregelados, com a roupa agarrada ao escanzelado corpo. Não havia
nada que os protegesse. As suas casas tinham as fogueiras quase apagadas. A
lenha mal chegava para fazer o caldo, se houvesse com quê.
Alguns, a tiritar de frio, traziam um sorriso
feliz no rosto magro. Coisa estranha. Admirava eu à janela, a comer o meu naco
de pão e chicha gorda, o riso que iluminava o olhar noturno e, então,
vislumbrava um coelho, uma perdiz ou uma lebre, apanhadas em segredo.
- "A minha Maria ainda por lá terá um
cibinho de azeite ou banha. Que bem nos vai saber. As crianças estão tão
magras! Estamos em outubro e já não temos quase nada para comer. Que será de
nós?"
- "Se o inverno vier difícil, que Deus nos
ajude."
Assim pensavam os dois homens jovens que se
apressavam para casa, ávidos de calor, prenhos de fome.
O ranger das botas nas tábuas não acordava os
poucos animais que se recolhiam na loja. Acordava os filhos que dormitavam no
escano junto à fraca fogueira. Corriam para o pai com sorrisos vários e os
abraços pequenos enchiam o coração do rapaz-pai que os amava mais que à própria
vida.
Zulmira atiçou o lume e deitou mais um pau na
fogueira. No louceiro composto por algumas tábuas de castanheiro bravo,
aplanadas pelo tio Manuel e tão rústicas como a vida. Em cima da que servia de
bancada, estava um pequeno tacho de esmalte, já esboucelado, com batatas
descascadas e lavadas. Ao lume, um pote com água aguardava as batatas.
Quando olhou para o marido, viu-lhe na mão um
coelho selvagem, apanhado numa das armadilhas que, aqui e ali, João ia
colocando, sempre com receio de que alguém o acusasse. Já não se lembrava da
última vez que haviam comido tal animalzinho. Ia saber pela vida com as
batatinhas que se preparava para cozer.
Sorriu para o marido que esperava de olhos
fitos nos dela. Depressa foi buscar outro pote, a cebola e a azeiteira de latão
comprada na feira de Vinhais.
As crianças, três, que cabiam todas dentro de
um cesto, aninharam-se junto à fogueira, sentadas nos seus pequenos tripés e
olhavam para os pais, à espera de que acontecesse o milagre de uma refeição
abençoada.
Com a sabedoria ancestral do caçador, o pai
sentou-se no seu canto habitual e começou, com a navalha que trazia sempre
consigo, a tratar do coelhito. Com cuidado para não estragar a pele que
venderia ao peleiro quando por ali viesse, depressa se desenvencilhou da
tarefa. Abriu-o e limpou-o. Ali mesmo o lavou, num tacho que a mulher lhe deu,
e o partiu.
Já crepitava o azeite com a cebola no pote.
João acrescentou-lhe o coelho, Zulmira o sal, uma folha de louro e uma pitada
de pimento. Mexeu com a colher de pau e tapou o pote com o testo sem o abafar.
No outro pote já estavam as batatas, quase a ferver.
Sentou-se no seu banquinho de três pernas e
sentiu o silêncio. Ninguém dizia nada. Apenas o estrugir do coelho e o
borbulhar das batatas nos potes e o crepitar da lenha na fogueira enchiam a
pequena cozinha de sons, belos e melodiosos, ao mesmo tempo que preenchiam o ar
com um cheiro maravilhoso que se entranhava nas narinas como se fosse o melhor
perfume do mundo. E era.
João meteu a mão aos bolsos exteriores do
casaco que ainda não havia despido e retirou quatro pequenas maçãs de inverno.
Eram ácidas. Estavam geladas, mas foram recebidas como um doce maravilhoso e
único. Os olhos resplandeciam nas carinhas redondas das três crianças. Bateram
palmas e soltaram gritinhos de alegria.
- “Pai, assa, pai, ali nas brasas.”
Agachou-se, agarrou nos ferros e puxou
algumas brasas onde colocou as maçãs, aconchegando-as. Só então se apercebeu de
que tinha a roupa molhada. Despiu o casaco, pendurou-o na ponta do escano para
que secasse. Descalçou os socos, tirou as meias de lã de ovelha que a mãe lhe
fizera e pousou-as na pontinha do banco.
A jovem mulher mexia o coelho e picava as
batatas com um garfo de ferro com dois dentes; tinha sido do seu bisavô. Não
demorava.
Foi buscar os pratos de esmalte azul, garfos,
colheres e uma caneca de lata com água para os seus meninos. O marido
levantou-se e foi buscar uma garrafa meada de vinho e um copo.
Começaram a comer o seu manjar dos deuses. Os
pais a ajudar os filhos. Os melhores bocados… primeiro eles. O que sobrasse
seria para os adultos. Nessa noite poderiam dormir consolados. O caldo ficaria
para o matabicho. Não tinham pão, só restava uma côdea dura que as crianças não
conseguiam comer.
- “As maçãs, pai! As maçãs!” - Gritavam
felizes os três.
- “É verdade! Já me esquecia.” – Riu-se com
uma careta exagerada de espanto. Olhou para os filhos e consolou-se com as suas
gargalhadas.
Retirou os frutos da cinza, limpou-os, tirou-lhes
a casca e partiu-os aos bocadinhos que foi distribuindo por todos, ele e a
mulher incluídos.
Não demorou nada, já as crianças dormiam. Os
mais novinhos, no colo dos pais. O António, de cinco anos, encostado à mãe que
o abraçava com o braço livre.
Deitaram-nos na mesma cama, bem aconchegados
com os pesados cobertores de lã, feitos no tear pela tia Madalena.
Deitaram-se no cubículo a que chamavam
quarto. Mal passava das oito e meia da noite. Anunciava-se uma noite fria,
apesar de estarmos em outubro.
(Continua. Pode ser que chegue a ser um livro.)
Maria Videira (Maria
Cepeda)
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