segunda-feira, 23 de dezembro de 2013

Feliz Natal!


Boas Festas!

Feliz Natal e um Ano de 2014 cheio de magia!
 
Esta paisagem tão bela
De branco, vestida
De frio, enfeitada
É pura magia.
 
A lua envergonhada,
Tenuemente ilumina,
A ponte pequenina
Que, sobre o rio gelado,
A todos encaminha
Para o outro lado
Não há pegadas.
A noite está fria.
O céu estrelado
Tudo alumia.
 
O pinheiro enfeitado
Salpica de cor,
Os sonhos que tenho
De paz e amor,
E uma mesa farta
Com muita alegria.

São os meus sinceros votos.
Maria Videira

quarta-feira, 18 de dezembro de 2013

Viagem (ainda)

Inverno. Dezembro quase janeiro. Novo país, nova vida. Outro eu, o mesmo eu. Conflito. Saudade. Chocolate quente, denso, daqueles que fazem bigodes divertidos e brincalhões.
Tripé baixinho talhado pelo meu avô de um pau de castanho, agora meu.
Lato ao lume com a vianda dos porcos a fervilhar. Mais uma malga de trigo, algumas castanhas... "Já não querem comer.", diz a avó. "Está na hora de fazer a matança."
Manhã gélida, ar cortante apenas entrecortado pela fogueira generosa e polivalente.
Uma bela torrada na ponta da faca equilibrada na grelha. Mãos hábeis, viram-na para que torre pelo outro lado. No escano a azeiteira aguarda a sua vez. Observo. Aprendo e comparo.
Aqueço as mãos que tenho frias. Pequenas e alvas, pouco habituadas a trabalhos rudes. Apenas a maciez dos livros ávidos de serem lidos. Doces sobremesas aos fins de semana.
"Faz a tua cama! Arruma o teu quarto!" A voz incisiva da minha mãe, quando eu já carregava os livros e a sacola, atrasada para o ônibus que não podia perder.
Saltava os degraus como uma pantera, quase aterrando de joelhos no chão em precário equilíbrio. Não tinha tempo para cair. Porta fora, corria para a praça, manhã fresca de verão, ainda enfarruscada pela noite escura. Quase seis horas da manhã.
"Ai que já não o consigo apanhar!" Mais velocidade, um livro que cai falhando por pouco a valeta. "Puxa vida!"
Avisto o ônibus. Aceno ao motorista. Vê-me. Espera com o carro engatado. Todos olham para mim. Todos nos conhecemos e reconhecemos de todas as manhãs à mesma hora. Cheguei sem fôlego e sou içada por dois senhores que já sorriem.
"Bom dia!", em uníssono, cantada resposta com sabor a bossa nova.
Mostro o passe, passo a catraca, agradeço ao motorista, "Da próxima, eu não vou esperar por você." Sorriso malandro no canto da boca, fingindo zanga.
Ao longe, uma voz doce com sotaque português, desperta-me da minha viagem ao meu recentíssimo passado.
"Toma a torrada, filha! Pega no prato. Onde estarias tu, rapariga?"
Maquinalmente obedeci. "Obrigada, avó." Estava tão longe, tão alheada do meu lugar de agora que até o frio se tornara suportável, travestido de calor tropical.
"Estás pouco faladora, filha... Tens saudades, não é?"
O carinho e a ternura das suas palavras abriram o dique das minhas emoções e eu chorei como um rio no seu remanso mais calmo.
O andar arrastado do meu avô fez-me engolir todas as águas da minha mágoa. Vinha contente, pareceu-me... "Ainda és mais pimpona à luz do dia, rapariga! És parecida com o teu pai." Sorriso ténue nos lábios finos.
"Oh mulher, dá-me cá uma malga e um bucho de aguardente. É preciso aquecer o corpo que o frio impregna os ossos." Ao mesmo tempo pegou no pão e na sua navalha de bolso e cortou uma fatia de ponta a ponta que posou na toalha sobre a mesa do escano. Foi à mosqueira e tirou de lá um bocado de carne gorda cozida. Cortou uma boa fatia que colocou na grelha. O cheirinho espalhou-se como fumo invadindo as narinas agradavelmente.
A avó apareceu com um pequeno copo de vidro cheio de aguardente e uma malga vazia. Já o meu avô se sentara no seu banquinho de castanho. Ajeitou as brasas, pôs mais um pau ao lume e encheu a malga com o chocolate quente que se consolidava no pote. Deu um trago na aguardente e virou a carne que crepitava na grelha exalando todo o seu poder. Cortou a fatia de pão ao meio e, virando-se para a grelha, com a sua inseparável navalha, tirou um bocado generoso da crepitante carne gorda.
"Queres um cibinho, garota?"
Anuí e estendi a torrada em que ainda não tinha tocado. Embora saborosa, era muito forte para mim. Comi com algum esforço e não voltei a comer. O chocolate cresceu na minha caneca. A torrada parecia interminável. Um nó angustiante na garganta impedia-me de engolir fosse o que fosse. Levantei-me e, com alguma dificuldade, abri a porta da rua. O ar era tão frio que me fez bem. Acordei da minha tristeza e, pela primeira vez, conscientemente, a única rua da minha aldeia, onde, alguns metros mais acima, numa casa com uma pequena varanda cheia de craveiros, eu nascera, há pouco mais de vinte anos.
"Ui! Que frio! Entra e fecha a porta rapariga, que ainda congelas!" A minha tia, atrecida, embrulhada num belo xaile de lã. "Bom dia!"
Dez horas. Tudo branco. Pingentes a brilharem pendurados dos beirais... A viagem só agora começou.

Maria Videira (Mara Cepeda)

sábado, 7 de dezembro de 2013

Viagem (continuação)

O meu primeiro dia neste novo planeta, Trás-os-Montes, acabou com um jantar que me consolou a alma e o corpo. Nunca havia comido nada que tão bem me soubesse. As batatas cozidas no pote ao calor da lareira, regadas com o puro azeite da casa, as alheiras e as chouriças dos porcos alimentados com o que de melhor dá a terra, temperado com as maravilhosas castanhas longais e o trigo das searas arrancadas à força de braços aos montes da aldeia... Tudo conjugado com o calor das brasas de carvalho que crepitavam debaixo da grelha feita pelas mãos sábias do meu avô.
Recordo-me como se fosse hoje, agora. O meu palato saboreia, ainda, o tempero do fumeiro tradicional de vinhais, onde não havia artifícios nem invenções.
Na lareira, esmorecia o calor à medida que se consumia a lenha. Eram horas de ir para a cama que a noite era fria e cintilante de estrelas.
No quarto que me foi destinado, uma cama de casal de madeira de castanho sem grandes ornamentações. Uma mesinha de cabeceira e um guarda fatos da mesma madeira e com a mesma pretensão do restante mobiliário. Era simples e funcional.
Ao lado do quarto ficava a casa de banho, básica, com o estritamente necessário ao conforto de um local recatado. Não tinha água quente. Essa, aquecia-se ao lume, no lato existente para o efeito.
Rapidamente enfiei o pijama mais quente que tinha e enfiei-me na cama onde me senti quase esmagada, tal era o peso dos cobertores de lã com que me cobria. Os lençóis, bordados pelas mãos hábeis da minha tia, mal impediam a aspereza do cobertor de pura lã de ovelha, tecido em tear manual.
Pensei: "Como vou conseguir dormir com este peso todo em cima?" Tinha os pés frios. Aninhei-me o melhor que pude debaixo de todos aqueles cobertores e tentei esquecer a saudade que sentia da minha vida anterior.
O sono, apesar do cansaço, não vinha. Ouvia os estalidos das madeiras antigas amplificados pela minha solidão. Pela pequena janela espreitava um raio de luar, da rubicunda e maravilhosa lua em noite de lobisomens.
Na ténue claridade do aposento, imaginava sombras e lagartixas venenosas e assassinas...
Quase sem conseguir respirar de tão abafada que estava, sentia a ponta do nariz enregelada. Geava dentro do quarto, tinha a certeza disso. Fechei os olhos rendida à exaustão.
"Cocorocó! Cocorocó!" Senti um baque no peito, o coração a correr os 100 metros obstáculos sem preparação nenhuma.
"Que coisa é esta?" O galo madrugador, cantava feliz a anunciar a alvorada. Levei algum tempo a reconhecer o som e a serenar os batimentos cardíacos. Olhei para o relógio de pulso, presente do meu pai, do qual nunca me separava e vi que eram as quatro horas da manhã.
Desalentei. "Agora que eu tinha conseguido, finalmente, adormecer..."
Toquei com um pé no outro e senti-o gelado, tão gelado que até me arrepiou. Verifiquei que o outro estava igual. Embrulhei-me em posição fetal na tentativa vã de me aquecer. Como era possível que com tantos cobertores em cima de mim, não conseguisse manter-me quente? Dei por mim a contá-los e descobri que eram oito. Oito cobertores!
Fiquei abismada e fria. Por mais que cerrasse os olhos convictamente, não adormecia. As horas foram passando lentamente.
Perto das oito da manhã oiço barulho na cozinha. No quarto, o raio de lua fora substituído por um tímido vestígio de sol.
Decidi levantar-me para aquecer os pés. Vesti-me sem grandes cuidados e abri a torneira do lavatório que soluçou sem gota de água, uma, duas, três vezes... apenas molhei os dedos indicadores para fingir lavar os olhos e a boca. Arrepiei-me até aos ossos com a friúra da água.
Voltei ao quarto e calcei dois pares de meias e as únicas botas que tinha. Abri a janela e arregalei os olhos de espanto. "Lindo! Ai, tão lindo!"
Dos telhados, das árvores, dos arbustos, pendiam pequenos pingentes de gelo que o sol transformava em diamantes refletores de luz e de todas as cores do arco-íris. No caminho de terra uma tal camada de gelo que poderia, se quisessem, fazer um bailado.
Não sei quanto tempo ali estive. Fui acordada pelo cheiro irresistível do chocolate quente. Segui-o instintivamente até ao lar.
"Bom dia, avó!"
"Bom dia, filha. Dormiste bem? Tiveste frio?"
Era um novo dia de muitos...

Maria Videira (Mara Cepeda)

Mais Mel...

Sem fazer caso da invasão do seu espaço, mantém-se agasalhada.
 
Maria Videira (Mara Cepeda)

Faz frio! A Mel que o diga!

A minha gata, embrulhadinha na sua manta. Lá fora uma enorme geada. Esperta! 
 
 
Maria Videira (Mara Cepeda)

domingo, 24 de novembro de 2013

Outono em Trás-os-Montes, sem dúvida


 

Esta dupla fascinou-me. Tinha pressa, estava atrasada. Mesmo assim voltei para trás e tirei a fotografia.
Nunca os havia visto desta maneira, lindos, assustadores numa noite escura...
Pelo chão, espalhados a esmo, os ouriços e as castanhas.
As folhas castanhas no chão... e a erva fresca quase primaveril, que insiste em aperaltar o cenário que a luz do sol não banha.
   
 
Maria Videira (Mara Cepeda)

terça-feira, 19 de novembro de 2013

Também de oliveiras se faz Trás-os-Montes (Brito de Baixo, concelho de Vinhais)

Mesmo que as silvas prosperem e invadam o terreno, a oliveira insiste em cumprir a sua missão: dar azeitonas para que delas o homem faça azeite.

Já começam a ficar negras, convidando à sua colheita. E de negro fruto, azeite dourado dá sabor à vida e a batata não precisa de carne para saber bem.
 
Maria Videira (Mara Cepeda)

Viagem

Sim, não sabia realmente nada do que ali se passava. Aquilo era de tal modo esquisito, tão inverosímil que parecia de outro planeta... Pensando bem, divaguei, isto é outro planeta.
Muita lama, pneus a derrapar, a minha tia a dizer-me para cortar giestas para espalhar à frente dos pneus. Eu tinha, apenas, as minhas mãos nuas, geladas. Enterrava-me no lodo. Já não conseguia distinguir a cor das minhas botas. Não sabia que podia ser tão doloroso. Nunca me sentira tão desamparada. Finalmente, terreno seco, estrada quase caminho que nunca vira asfalto. Exímia condutora, a minha tia conseguia tirar partido da sua experiência.
"Estás triste? Foi complicado lá em cima. Desculpa! Magoaste as mãos? Quando chegarmos a casa vamos ver como estão. Vais ver que as coisas vão melhorar." 
Anestesiada pelas incertezas que me invadiam o pensamento, cheguei a casa dos meus avós, acompanhada pela minha tia, noite escura, dezembro, quase janeiro, Natal, quase Ano Novo.
Tirámos as malas do carro, a minha vida em duas malas, que subimos com dificuldade pelas escadas rústicas de pedra, pedra mesmo, alisadas pelas muitas pessoas que por elas subiram e desceram ao longo dos muitos anos da sua existência enquanto degraus, que da sua outra vida nada sei e já não tenho quem me possa elucidar.
Ninguém me veio receber à porta por onde tremeluzia uma escassa luminosidade. "Ó de casa! Pai, mãe, já chegámos." Levei algum tempo a habituar-me à escuridão. Apercebi-me de que a pouca luz vinha de um pequeno objeto pendurado de um prego na lareira que, soube mais tarde, chama-se candeia.  Apareceu a minha avó, magrinha, olhos azuis-acinzentados, lenço na cabeça, avental, vestida de inverno, sorriso tímido, olhar matreiro e doce...
Dela me falara o meu pai vezes sem conta, sempre com um orgulho indisfarçável na voz húmida e terna, imbuída de um amor sem reservas. Era, exatamente, como ele dizia, apenas mais velha.
"Então quem és tu, filha? Que saudades! Que alegria! Estás uma mulher! Bonita, bonita..." Tudo ao mesmo tempo, numa catadupa de emoções e abraços e beijos sem fim...
Vim a descobrir que a minha avó era uma mulher contida, reservada, serena como um outono sem vento. Tinha, também, um sentido de humor inteligente, uma inteligência ponderada e uma sabedoria que só o tempo pode dar, mesmo que já se tenha nascido sábio.
Pachorrento, desconfiado, apareceu o meu avô, cabelo branco, bigodinho no centro do lábio superior, olhos penetrantes, argutos... olhou para mim de lado, com um meio sorriso...
"Já cá estás? Chega-te ao lume que deves estar cheia de frio." Dei-lhe um beijo e um abraço, pegou-me no braço e arrastou-me com ele até ao lar onde crepitava uma valente lareira. "Senta-te naquele banquinho, quece-te."
Assim fiz, obedientemente. Só agora me havia apercebido da fogueira. Agradeci o calor. Olhei em volta e senti-me só. Tinha um enorme vazio no meu coração que nenhum calor conseguiria preencher. Faltavam-me os meus irmãos, o meu pai, a minha mãe... Faltava-me o meu mundo, o meu espaço... Teria feito bem?
Ficámos calados um breve momento, aconchegados pelo conforto do lume. Sentia todos os olhos pregados em mim a analisar-me como se me estivessem a ver pela primeira vez.
"Bem, vamos fazer o jantar. Haveis de estar cheias de fome."
"Não avó. "Não tenho fome nenhuma."
"Com fome ou sem fome, são horas de comer." Levantou-se e saiu do lar contornando o escano, acompanhada pela minha tia. Ficámos eu e o meu avô que me olhava insistentemente, inquisitivamente, como se eu fosse um fenómeno nunca visto. Não sei o que buscava em mim. Ouvi-me dizer que o meu pai mandava muitos abraços cheios de saudades e que agradecia por me receberem. Que sabia que cuidariam bem de mim.
"E os teus irmãos, são bons estudantes?"
"Sim, avô, muito bons."
"E tu, então, já és professora..."
Disse-lhe que sim, que agora era necessário tratar da equivalência para poder começar a trabalhar. Tinha trazido todos os documentos necessários para o fazer e queria que tudo se resolvesse  rapidamente. Olhou-me com um ar desconfiado de quem tem algumas dúvidas.
"E a tua mãe? Tem andado boa? Na última carta que o teu pai mandou dizia que ela esta adoentada."
"Já está melhor. Tiraram-lhe a vesícula que estava cheia de cálculos e agora já nem parece a mesma."
"Melhor assim."
"Pai, ponha uma chouriça e umas alheiras na grelha. Vamos ver se a garota gosta."
"Gosto tia. No Brasil também comíamos alheiras. A minha mãe chegou a fazer algumas vezes com uma amiga portuguesa."
Apareceu com um pote que colocou ao lume. Bateram à porta e o meu avô, automaticamente: "Entre quem é!"
A porta, da mesma idade dos degraus de pedra, rangeu nas dobradiças, pesada como é. E rústica, muito rústica, de madeira maciça e negra como a noite onde apenas faiscavam as estrelas no céu. O ar que por ela entrou era cortante como lâminas.
"Graciano, és tu? Entra homem, entra e fecha a porta que está frio!"
"Vem aí a minha tia tio João."
No mesmo instante assomou à porta uma figura pequenina e magra, lenço azul na cabeça, um casaco maior do que o seu corpo necessitaria. Um sorriso desdentado mas doce como o mel e um ar de  candura quase inacreditável. Soube que era a minha outra avô, mal olhei para ela.
"Entre tia Maria, entre que está frio."
Fui ter com ela e abracei-a. Dei-lhe um beijo e ela comeu-me com os seus. Senti as suas lágrimas quentes de alegria. Finalmente cumprimentei o primo da minha mãe e todos nos sentámos nos escanos da lareira, a minha avó agarrada a mim como se tivesse medo que eu fugisse.
A minha tia afadigava-se com as batatas e o meu avô ajeitava as brasas para colocar a grelha.
Muitas perguntas sobre os meus irmãos, a minha mãe, o meu pai... Muitas respostas mal ouvidas. A minha avó era bastante surda mas entendia com o coração. O meu avô convidou-os para comerem connosco mas eles disseram que não. Já tinham comido. Ficaram mais um bocado e despediram-se, a minha avó com o coração no olhar que não desviava de mim. Abraçou-me mais uma vez e disse que voltaria "amanhã de manhã."
Saíram. Sentei-me no meu banquinho. Mente vazia e ao mesmo tempo repleta de pensamentos desconexos e emoções com as quais lidava com dificuldade. A minha avó Ana, sentada no seu tripé, observava-me. O meu avô sacava da sua Palaçoulo de bolso e cortava do lareiro duas alheiras e duas chouriças de carne. No pote ferviam as batatas...

Maria Videira (Mara Cepeda)

segunda-feira, 18 de novembro de 2013

Quando o senceno finge mar

Hoje, por volta das 8 horas da manhã, a minha aldeia escondida pelo senceno.

Haverá coisa mais linda?
 
Maria Videira

 

Outono

 
     
 
 Um outono ensolarado na minha aldeia.

Maria Videira

segunda-feira, 28 de outubro de 2013

O castanheiro e a guerra

Natália nasceu em novembro de 1935, quatro anos antes do início da II Guerra Mundial, numa pequeníssima aldeia do concelho de Vinhais, em Trás-os-Montes.
Tinha, portanto, dez anos quando a guerra acabou. Diz ela que não se recorda de nada relacionado com a guerra, apenas da fome que grassava no minúsculo mundo que conhecia. Nem sequer se lembra de alguma vez ter chegado a Vinhais. Ia com a mãe, que era cesteira, pelas aldeias em redor sempre que havia trabalho. Não gostava de a acompanhar, mas como era muito pequena, não tinha outro remédio. Sentia-se assoberbada. Era muito tímida e ao mesmo tempo bastante inteligente. Umas vezes era muito bem tratada e acarinhada, outras relegada ao seu lugar de filha da cesteira, gente simples e operária. De tudo se apercebia na sua tenra idade e isso marcou-a. Deixou de acompanhar a mãe logo que se tornou capaz de fazer um caldo, ainda a guerra não tinha acabado.
Desse e de outros tempos, recorda-se das muitas crianças da aldeia, esfomeadas, despidas e descalças.
Disso, recorda-se com tristeza porque era uma delas, apesar de alguma coisa "mais rica".
Ainda sente o frio a enregelar-lhe a alma, vestida de trapos, com remendos sobre remendos, mas nunca andou descalça. Sempre teve um casaco remendado para vestir por cima do velho vestido. Tinha os socos que a mãe nunca lhe deixou faltar. Um vestido de chita novo pela Páscoa. As meias, que cedo aprendeu a tricotar, eram feitas da rude lã das ovelhas e cerzidas até não ser possível mais cerzi-las. Ela tinha meias. Outros tinham os pés nus, vermelhos e gretados, tão frios como a geada que caía quase todas as noites de inverno. Alguns, poucos, tinham botas de cabedal e as mesmas meias de lã de ovelha, menos puídas.
Na lareira ardiam as urzes, as giestas, os galhos que se apanhavam pelos caminhos e os paus de uma ou outra árvore que caía de velha ou era abatida por uma tempestade e que se traziam às costas ou a cavalo num qualquer burrico faminto e quezilento. Poupava-se a lenha mais do que o pão negro que nem todos tinham.  
Não tinha fartura mas tinha sempre um bocado de pão centeio, amargo como a vida, quase intragável, mas coberto de mel, quando a fome era tanta que já não havia mau pão. Quem, naquele tempo, naquele lugar, se podia dar ao luxo de comer um bocado de trigo? 
Nunca lhe faltou um punhado de figos secos, algumas nozes, um caldo de couves e batatas, um ovo de vez em quando, um naco de carne gorda, um cibo de unto para temperar o caldo e tornar menos intragável o pão. Nem todos tinham a sua sorte.
Recorda-se, mal, do racionamento de alimentos. Ela e a mãe tinha direito a um tudo nada de açúcar e sal, uma malguinha de arroz, um bocadinho de queijo... Aquilo a que cada família tinha direito baseava-se no número de elementos que possuía. Por mais que fossem, se não houvesse dinheiro, não havia senhas. A miséria era tanta que é impossível de esquecer.
Embora neutral, Portugal e o seu povo sentiram a guerra mesmo sem saber que o mundo estava em guerra. Os ecos chegavam às aldeias transmontanas aos pinguinhos. Os mais pobres tinham outras preocupações, sendo a mais premente, não morrer à fome. A vida seguia o seu triste e desamparado rumo para a maioria da população. Natália não se recorda da guerra, nem sabia se era a segunda ou a primeira ou a vigésima.    
Do que se recorda com carinho, é do castanheiro da fotografia que ilustra este pequeno texto. Era dentro do tronco oco desta árvore ancestral que ela e a restante garotada, acendiam o lume com os guicinhos que iam apanhando por ali à volta, ou os que arrancavam do próprio castanheiro para se aquecerem nos dias de inverno. Ali se abrigavam da chuva. Ali assavam batatas e cebolas que comiam como lauto manjar.
Não se lembra de quando o castanheiro ficou neste estado. Também não era da lembrança da sua mãe. Sempre o conheceu assim, esventrado, queimado, mas vivo e a dar castanhas. Sempre se admirou com a resistência deste gigante e nunca passa junto dele que não o reverencie e fale dos seus tempos de criança em que se sentia aconchegada e quente como se fosse o colo da sua mãe.

Maria Videira (Mara Cepeda)

quarta-feira, 23 de outubro de 2013

Avô com certeza, bisavô talvez...

 
Belo! Que palavras poderei usar para descrever esta maravilhosa árvore?
Que artista esculpiu tamanha maravilha, senão um qualquer Michelangelo, travestido de chuva e vento, de neve e sol, de frio e calor?
É velho, sim, tão velho que tantas crianças por ele passaram e com ele palraram que a sua canção, em noites de vento, embala as almas envoltas em tormentos. 
 
Maria Videira (Mara Cepeda) 

Castanheiros, Brito de Baixo

A minha mãe espreita os ouriços. Diz que são pequenos. Será que estas chuvas outonais ainda poderão ajudar no crescimento das castanhas?

Belas árvores. Para mim, são belas em qualquer estação do ano, até mesmo no inverno, completamente despidas.

Souto novo, ainda "imberbe", começa a dar as primeiras castanhas. A minha mãe, a meu pedido, posa junto de um castanheiro mais velho mas, ainda assim, jovem se comparado com outros

Castanheiros e paisagem

Os nossos campos, mesmo ao abandono, refletem a beleza simples e despretensiosa dos homens e mulheres que trabalham o campo com o carinho rude dos amores verdadeiros e ancestrais.

Qual esculturas de artesão enfurecido, ei-los, esventrados... continuam, no entanto, a dar a sua dádiva: castanhas.

 
 
      
Numa curva do caminho, belo, o castanheiro impõem-se com audácia, sem julgar nada, do que na vida se passa. Na paisagem crua, coberta de negras nuvens, a dureza da vida do agricultor que tem de apanhar as castanhas, sobe e desce pequenas e íngremes "montanhas".
 

Maria Videira (Mara Cepeda)

terça-feira, 22 de outubro de 2013

A fonte

 
Esta fonte, recordo-me dela, menina ainda, cheia de água no inverno e quase seca no verão. Hoje está quase irreconhecível, abandonada. É tempo de fartura (de água, felizmente) na minha aldeia, tão pobre de gente. Tão bela e tão só, qual Moura Encantada.

Quantas vezes aqui vim, madrugada dentro em noites quentes de verão, dois cântaros de esperança e um copo de lata na mão.

No fundo, um quase nada de água fresca, límpida, pura, brotando da rocha como dádiva divina. A diferença entre a morte e a vida, entre a sede e a saciedade...

Que saudades tenho desses tempos tão difíceis! Era tão feliz e não sabia!

Tinha a liberdade dos ventos que correm pelos montes em tropelias tais, que só Saci Pererê se lhes assemelha, neguinho arretado, um diabinho, mas tão bom que apenas se apercebia da dor alheia, retornava para compor as pequenas maldades que havia espalhado, aqui e ali...

A felicidade só se podia comparar à de nascer cravelina vermelha, no alto da Fraga dos Cães, namorada contemplativa do Castro Mau, assustador, mas com a serenidade da noite mais profunda, onde apenas o rumorejar da água que incessante passa, se sentia.

Já não sou essa flor delicada e selvagem, tão frágil que uma mão pequenina de criança a arranca. Sou agora, mais velha, menos pura, conspurcada pelo simples viver do dia a dia, trémulo, cruel como uma cama vazia.

A vida transforma-nos em seres desconfiados, enconchados... sorrisos caros e poucos, bons dias sorumbáticos e boas tardes mal humoradas porque faz sol e está calor, porque faz frio e está a chover, porque... sei lá... qualquer coisa...

A visão da fonte de Trás-do-Monte, tão só como me sinto, aniquila-me. Somos gémeas, irmãs siamesas na solidão, na incapacidade de voltar a renascer água pura, de matar a sede e consolar a secura que me vai na alma triste.

Esta fonte, recordo-me dela... tanto tempo passou, tia! Tanto tempo que apenas se esvai como areia fina entre os meus dedos, que agora são mãos abertas e ávidas em busca dos meus segredos.

O meu Saci Pererê envelheceu. É agora preto velho de uma perna só, sentado ao lume, com o cachimbo apagado entre os lábios ressequidos, sedentos da tua água, Fonte!

Mãe, dá-me colo! Estou só como um açor que busca a sua presa, na imensidão deserta do espaço que sobrevoa. Não vês a minha mão a procurar a tua? Que se passa? Não me queres de volta ao teu ventre? Nem por magia poderosa do teu coração, mãe, poderia voltar a ser em ti, mas, dá-me o aconchego do teu carinho único. É disso que necessito, mais do que da água límpida da fonte.

O tempo passou avó. Tão depressa que os teus cem anos foram um breve suspiro. Não ias gostar de ver as tuas coisas agora. A tua casa caiu, avó. A arca onde nos guardavas a todos, desfez-se na voragem dos dias de chuva inclemente. As minhas sandalinhas cor-de-rosa salpicadas de pequenas flores pintadas à mão, não sei delas. Os teus lençóis de linho com monograma estão puídos. As fotografias dos teus netos, levou-as a humidade. As fitas com que me apertavas o cabelo loiro e encaracolado sumiram-se na loja dos porcos, levadas por uma aragem travessa.

E volto à fonte, mais uma vez, sem púcaro, sem cântaros, sem sede de água... roubo estas duas fotografias (más, diga-se) e fico imensamente triste por me aperceber de tudo o que se perde se não tivermos a capacidade de captar o momento, aquele fugaz momento em que um anjo te roça o rosto com a delicadeza das suas asas puras...

(Saci Pererê, é um ente mitológico das lendas brasileiras. Não posso, nem quero, perder as memórias da minha vida no Brasil. Aqui deixo este moleque danadinho e estouvado.)

Mara Cepeda

quinta-feira, 15 de agosto de 2013

Férias

Apenas, praia, mar e sol!
Nada mais além do passar sereno dos dias quentes de verão.
Nada mais além do não ter tempo para ter pressas.
Acordar quando a vontade quiser.
Comer sem respeitar horários.

Deixar-se ir, serenamente, como as ondas do mar.
Fingir não pensar nos problemas das nossas pequenas vidas
Sonhar que se pode sempre ser feliz
Assim, como barquinho ancorado no meio de uma tranquila lagoa
de águas cristalinas e salgadas com pequenos peixes a povoarem o fundo...

Mara Cepeda

domingo, 30 de junho de 2013

O meu jardim






 
Maria Videira (Mara Cepeda)

A minha cerejeira





 
Amanhã continuaremos a colher esta dádiva de Deus, através desta linda cerejeira, ainda tão novinha e já tão fecunda.
 
Maria Videira (Mara Cepeda)