A sua vida, apesar de, a nível físico, ser desgastante, enfermava por não a preencher a nível intelectual e afetivo. Sentia um vazio imenso, incomensurável como o mar.
Dias sobrepunham-se a dias, noites anunciavam novas noites. O passar do tempo era inexorável. Ao inverno seguia-se a primavera, o verão, o outono... Na sua vida não havia paixão, apenas trabalho.
Os pequenos prazeres que ela apenas adivinhava, passavam-lhe, às vezes, pela cabeça.
Nada sabia, nada conhecia. Sempre que conseguia deitar as mãos a um livro, devorava-o como se pão para uma boca esfomeada.
Não se pense que era uma pessoa triste, sorumbática. Não. Apenas insatisfeita, incompleta...
Ansiava, um dia, sair dali. Não sabia para onde, nem lhe interessava. Apenas queria conhecer coisas diferentes, lugares novos.
Não amava ninguém, ainda. Arrastava uma pequena asa azul de borboleta pelo José, mas respirava inocência. Não se interessava muito pelas conversas das amigas, mais sabidas, mais libertinas. Corava involuntariamente quando se metiam com ela e lhe diziam que fulano queria deitar-lhe a mão. Zangava-se e ia à sua trabalhosa vida. Não era isso que queria. Não daquela forma.
Sonhava com o equivalente a um belo príncipe que a amasse e a respeitasse. Desejava construir uma vida a dois e poder aliviar a sua pobreza.
Pensava muito como habitualmente mas, o coração não pensa e quando se apaixona, pouco há a fazer. O amor entrou no coração de Natália quando ela tinha dezasseis anos. O eleito foi José, um belo rapaz, filho do lavrador mais abastado da aldeia. Muito trabalhador, muito divertido, sabia fazer quase tudo, desde cortar cabelos ou tocar bandolim, até arrancar toros e lavrar uma terra com uma junta de bois.
José há muito que andava de olho naquela rapariga tímida e trabalhadora. Sabia da sua tenacidade e independência. Admirava a sua valentia e o seu bom senso.
Com dezanove anos, não se sentia capaz de assumir uma família. Também conhecia as intenções dos pais relativamente a quem devia desposar. Naquele tempo, os casamentos ainda eram combinados pelos pais e José estava destinado a alguém do seu estrato social. Natália, segundo eles, não estava à sua altura.
A juventude é temerária e o amor, atrevido. Os dois esqueceram-se, rapidamente, de todos os impedimentos e entregaram-se à sua paixão que viveram, secretamente, durante quatro anos. Ao fim desse tempo, Natália, naturalmente, engravidou.
José quis abençoar o amor que os unia e o filho que Deus fizera o favor de lhes oferecer e comunicou aos pais a sua intenção de casar com a mulher que amava.
Sem gritos nem fúrias vãs, o seu pai disse-lhe que isso era impossível. Que não poderia casar com aquela rapariga. Estava destinado a Arménia e nada poderia mudar isso.
A mãe, dona de uma inteligência assombrosa, entendia o mundo que a rodeava e sabia que não duraria muito, daquela forma quase medieval. Era contra as regras que estabeleciam o estatuto social e não o amor como linha orientadora de vida. Acreditava que se as pessoas pudessem casar por amor, teriam mais hipóteses de conseguir sobreviver às agruras e dificuldades próprias da vida de então.
Tinha passado pelo fim da monarquia, pela implantação da república, por duas guerras mundiais e pela guerra civil espanhola, essa mais próxima e sentida do que nenhuns dos outros acontecimentos, pois desenrolara-se, em parte, ali mesmo, debaixo de telha. Alguns morreram-lhe nos braços, doutros cuidou como de filhos, salvou a vida de muitos. Não conseguiu esquecer essa guerra fratricida, sanguinária. O filho nascera-lhe em 1932. Era, portanto, um rapazinho quando essas atrocidades aconteceram e de tudo se apercebeu. Sabia bem o que era a fome e a falta de quase tudo. Conhecia muito bem as misérias do ser humano.
Por tudo isso, aprendera a dar valor ao que verdadeiramente era importante. Não se deixava enganar por vaidades vãs. Tentou falar com o marido e pediu-lhe que pensasse bem, que a moça era boa rapariga. Não conseguiu demovê-lo das suas intenções.
José entristeceu, Natália pensou que a sua vida tinha acabado. Encontraram-se nas margens do Tuela, junto ao Castro Mau. Amaram-se, choraram nos braços um do outro. Era setembro, fim de verão…
Pedro chamou o filho e disse-lhe que o casamento com Arménia aconteceria dali a quatro meses. José chorou, falou-lhe da gravidez de Natália. Pediu-lhe que pensasse no neto que aí vinha… Nada demoveu aquele homem. Tinha dado a sua palavra e nem mesmo a felicidade do filho poderia fazer que voltasse atrás.
Ana não dormiu sobre o assunto. Decidiu que era necessário agir e assim fez. Foi às suas reservas e retirou todo o dinheiro que possuía. Escreveu ao irmão que tinha em Lisboa e esperou.
Chamou o filho para lhe contar o que tencionava fazer. Ninguém poderia saber, nem mesmo Natália. Só o saberia quando o José estivesse fora do alcance do pai.
“Mas mãe! Isso será a morte dela! Ela não vai aguentar tamanha dor!”
“Vai filho, vai. Logo que esteja no navio, falarei com ela e explicar-lhe-ei tudo. Cuidarei dela e do meu neto até tu voltares. Não te preocupes. Ela vai ficar bem.”
“Porquê razão o meu pai me fez isto, mãe? Porquê?”
“O teu pai é um homem de palavra. Tem uma reputação a manter. Faz parte da história da nossa família, filho. Eu compreendo a sua atitude. Não penses que não lhe dói estar a fazer isto.”
José continuava triste mas decidiu viver os dias antes da sua partida como se fossem os últimos. Mimou Natália como nunca. Ainda não se notava a gravidez e ela tinha uma aura, uma beleza quase impossível. Viveram um para o outro, descurando tudo o resto.
A resposta à carta foi célere. Estava tudo tratado. José embarcaria para o Brasil dentro de três semanas. Domingo apanharia o comboio em Bragança e seguiria para Lisboa. Faltavam quatro dias. Era necessário ir a Vinhais comprar alguma roupa. E um bom par de sapatos.
Ao marido, elvira dissera que o rapaz precisava sair dali por alguns dias. Que tinha de pensar na vida. Pedro deixou-se enganar.
Domingo chegou mais rápido do que qualquer deles desejaria. Às três da manhã, montado na sua bela égua e acompanhado pelo seu criado que tinha tido alguma dificuldade em montar Ruça, uma mula possante como nenhuma outra, meteram-se ao caminho.
Ana chorou. Pedro fingiu dormir, apertando contra o peito um pequeno retrato do filho.
Natália dormia sobressaltada, com sonhos negros a povoarem-lhe o sono…
Maria Videira (Mara Cepeda)
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