segunda-feira, 31 de março de 2014

Tão triste e tão feia

ontem quase fui feliz
acreditei que o sol brilhará
sem nuvem que o esconda

e a chuva caiu
como quem chora
em leitos sem água
no leito do rio

enjeitei o momento
de me fazer ao mar
em barco de noz

naufraguei sozinha
estendida na areia
com a asa partida
tão triste e tão feia

Maria Videira (Mara Cepeda)

Tempo

que fazer se a hora excede o tempo
sem que a vida aconteça?
se eu merecesse um dia de facto
rir-me-ia de mim como um palhaço
chorando por dentro
ao som do compasso
que a banda toca
enganando o tédio
de um dia que se estende
e não entende que a hora se excede
e nada rende

Maria Videira (Mara Cepeda)
 

Imaginação

e jogos fazia de tanto sonhar
que nada vivia senão de imaginar

se chovia, chuva não era, claro que não
eram apenas as lágrimas de um dia cão

se muito esfriava, ao tempo não se devia
era apenas um gigante que, doente, gemia

se calor abrasava a face e a mão
só se devia, a um ténue vulcão

e tudo existia na sua mente desperta
de rapaz rufia com dois dedos de testa


Maria Videira (Mara Cepeda)

segunda-feira, 24 de março de 2014

Palavras

Que palavras são estas que me acompanham
antes da minha existência
no útero da minha mãe?
São elas que tão dolorosamente me escapam
através do suor que, da minha doce pele de mulher, emana.
E mãe sou dos filhos que não terei,
tempos de ternura,
de carinho,
tão limpo e suave como a canção da chuva que,
mansamente,
cai dos telhados adormecidos num dia triste/alegre de Outono,
envolto em perfumes de Primavera.
Que as minhas palavras embalem e serenem angústias
que, porventura, vidas desavindas,
tragam em carrosséis de emoções à flor da pele.
A palavra é tudo.
É silêncio quando o ruído impera.
É aurora quando raia o dia…
Mostra-nos tal como somos e estamos.
É a amiga que, num murmúrio, me dá guarida
naquele momento de séria tristeza.
É a alegria que sinto quando uma voz já antiga,
me conta uma história de bruxas malvadas,
maçãs vermelhas e envenenadas,
que o amor liberta com a expressão: “Tão linda!”
Mas se a palavra fosse apenas isso,
melodia,
feitiço,
lua cheia,
voz de comando,
sorriso…
seria pobre,
avara,
andrajosa,
uma concha vazia na areia da praia…

É o menino que balbucia,
a soprano que canta a sua peça favorita,
o marulhar da água nas pedras limpas do rio,
o sussurro do vento nas espigas de trigo,
o trautear de uma canção
que se ouviu de manhã cedo
ao acordar
e que nos acompanha durante todo o dia,
o soluço que o peito já não pode calar…

A palavra é o silêncio de um dia de chuva,
quando a noite tarda a chegar.
Não existe quando a alma está deserta de música.

Maria Videira (Mara Cepeda)

segunda-feira, 10 de março de 2014

Que fazes quando tudo deixar de ser?

Que fazes
Quando tudo deixar de ser?

Finges a melhor solução
Até ao fim do poço.

Qual é o fim
Quando não se tem um começo?

O rio leva muita água, muita...

A minha alma é líquida e turva
Como a água que o rio leva
E vai perdida
Como a terra que se desfaz
No maremoto.

Onde estais preto e branco?
Quando serei como vós?

Dá-me a ponta da asa
Dá-me, gaivota,
Do teu peixe podre
Que é melhor
Que ser social e hipócrita!

Maria Videira (Mara Cepeda)

Não sei o que espero...

Não sei o que espero
No imenso vazio
Se o mar é bravio
Nadar não quero.

O sol incide, estendo a mão
Vida fútil, quase vazia.
No meu coração
Não há harmonia.

O comboio avança
Levando o meu destino
E a mão não alcança
O sorriso menino.

Não desejo a tristeza
Do dia que não grassa
E procuro a certeza
Do comboio que passa.

O dia passeia
A noite já nasce
O menino anseia
Que a vida passe

E o comboio
Verdadeiramente
Passa...

Maria Videira (Mara Cepeda)

Chorar chorei

Ponto por ponto, linha por linha
Vou construindo, sina minha,
O que não se pode construir.

Engenheira de sonhos,
Busco no monte medronhos
Nenhum sono posso admitir.

Construi caminhos para correr
Do constante e sereno remoer
As horas passam, os dias não.

No caminho dos sonhos foge a vida
Na lenta sucessão, hora perdida
Dos tempos que agora são.

Estendi a mão para o longe
Secreta caverna, eremita e monge
Acendi a lanterna que a luz não dura.

Prendi a fera que em mim perdura
Afaguei quimeras, jurei candura
Chorar chorei. Mágoa alheia e pura.

Maria Videira (Mara Cepeda)

Tenho pena de mim

A hora tarda.
Diz a cotovia
batendo a asa.
Rica melodia.

Rica melodia,
praia deserta.
Som de maresia,
aurora desperta.

Aurora desperta,
olhar de sol-posto.
Anseia desoras,
carícias no rosto.

Carícias no rosto,
princípio do fim.
Amores austeros,
tenho pena de mim.

Maria Videira (Mara Cepeda)

domingo, 9 de março de 2014