domingo, 30 de dezembro de 2012

Feliz 2013

A todos os que fazem o favor de me acompanhar nesta pequena empreitada, desejo um Ano Novo repleto de realizações pessoais.

Obrigada
Maria Videira

quinta-feira, 13 de dezembro de 2012

Aquele dezembro...

"Estou prenha, Engrácia. Sei que estou... e agora ele vai embora. O que será de nós?"
"Fala com ele. Diz-lhe isso."
Natália chorava. Não sabia como reagiria a sua mãe. Naquele tempo, a desonra por se ter um filho fora do casamento, era como entrar na Idade Média.
Sabia que não ia ser fácil. Tinha, no entanto, algumas armas que, contava, lhe poderiam valer. Era boa rapariga e todos sabiam que nunca tinha tido mais ninguém. José fora o seu primeiro e único namorado. Se não fosse a família, já poderiam estar casados mas, para os padrões de então, ela não estava à altura dele. Era pobre. Não tinha um pai que a defendesse. A sua casa seria, por ventura, uma das mais abastadas da aldeia em termos de alimentação. Não lhe faltava que comer. Não havia dinheiro, nem grandes terras, nem grandes alianças.
A sua querida e trabalhadora mãe, órfã desde tenra idade, tinha sobrevivido com muita luta. Fora enganada, haviam-lhe suprimido os seus bens e ela não tinha quem por ela pudesse ou quisesse pugnar. Os melhores bocados da herança, engrossaram o rol de bens do cunhado.
Natália fazia o que podia. Trabalhava as poucas terras que tinham com o apoio intermitente dos primos e do irmão. Não lhes faltavam as batatas, o feijão, as cascas, os erbanços..., havia sempre umas couves de inverno e o mais que davam as hortas no tempo delas.
Tinham nozes e figos secos para os dias frios de inverno, as castanhas piladas que se aguentavam até ao verão, as azeitonas curadas na perfeição e o fio de azeite proveniente das poucas oliveiras que tinham.
Normalmente criavam uma ou duas porcas que sempre rendiam uns leitõezinhos e o rico fumeiro vinhaense e todos os derivados deste imprescindível animal que faziam a diferença entre a fome e a fartura.
Na capoeira, sempre uma meia dúzia de pedrezas e um belo galo cobridor. Não faltavam os ovos e os pitos sempre que havia uma necessidade. Criavam, também, alguns perus, delicados de criar. Era necessários apanhar as urtigas com que faziam a papa que, por vezes, era necessário enfiar-lhes pelas goelas abaixo enquanto eram pequenos...
O resto, vinha do trabalho da mãe, a tia Maria cesteira, à qual pagavam em géneros e, às vezes, com algum dinheiro.
Definitivamente, viviam melhor do que muitas famílias mais abastadas da aldeia. Não tinham luxos e o pão que comiam era o amargoso centeio, quase intragável. Ainda hoje não o come, embora não tenha nada a ver com o centeio da sua infância e juventude.
As lágrimas não paravam de lhe sulcar o rosto jovem e belo. Era, definitivamente, bela...

Maria Videira (Mara Cepeda)

terça-feira, 11 de dezembro de 2012

Era dezembro, quase Natal...

O Natal não demorava a chegar. Dezembro havia começado, carrancudo, arisco...
A mulher vinha ligeira, denotava pressa e algum desconforto. Passou como um fantasma pelas pessoas que, ao vê-la passar, branca, pálida, ficavam com o cumprimento a meio, suspenso num limbo de incerteza e aflição.
Entrou em casa e, finalmente, chorou como se todos os diques tivessem rebentado ao mesmo tempo em todo o mundo. O desespero vertido em lágrimas grossas, molhava-lhe o rosto e as mãos. Um grito escapou-lhe da garganta onde já não podia estar. Tudo havia acabado. Era o fim. Nada mais importava.
Natália pouco passava de ser uma menina. Não entendia porque razão lhe pesava tanto aquele sentimento. Era como se o estômago se lhe comprimisse cada vez mais até quase deixar de existir.
Não podia ser verdade. Não assim.
Que poderia ela fazer?
Como conseguiria sobreviver ao intenso sofrimento que a aniquilava?
Morreria... era certo que morreria.
Sentia dentro de si, que já não estava só. Sabia que estava grávida, mesmo que apenas o intuísse.
Que seria dela agora?
Como poderia continuar a viver?
O Natal aproximava-se, inexoravelmente. Não que os seus natais fossem, de alguma forma para recordar. Balizavam-se pela mesma pobreza de sempre, menos intensa porque havia sempre o bacalhau e o polvo, pão fresco, um pão-de-ló e umas filhoses.
Vinham os dois primos que ainda não tinham família e o meio irmão. A mãe esperava que ela fizesse tudo e ela fazia, mesmo morta por dentro.
O frio era aterrador. Nem o enorme lume que se erguia no meio do lar conseguia aquecê-la. Valiam-lhe os primos e o irmão que lhe traziam a lenha para casa.
Amanhã era feira em Vinhais. Tinha de ir. Era preciso comprar as coisas para a consoada. Precisava de uma saia e de um casaco mais quente. Tinha de comprar lã para tricotar meias. Talvez uns socos...
Esvaíasse por dentro. Oca como uma concha vazia.
Ele ía para o Brasil... Como pudera pensar nisso? Como?
Trazia no ventre o fruto do seu amor. Como poderia justificar a sua leviandade perante a pequena aldeia?
Não podia ser verdade. Porque não podiam ir juntos?
O que seria dela e do filho quando Deus lhe mostrasse a luz do mundo?
Não havia esperança. Morreria...
"Que tens tu, rapariga?" "Que tens mulher?" "Que desespero é esse?"
Engrácia sofria por vê-la naquele estado e não poder fazer nada. Sabia do que se tratava. O Zé ia para os brasis, chamado por uns primos que lá tinha. Era corajoso o rapaz. Tinha de ir porque ali não havia futuro. Sentia-se preso, angustiado...
Natália secou as lágrimas inclementes, mostrou os olhos tão profundamente tristes que se fez noite sem estrelas no seu olhar.
"Estou grávida, Engrácia."
Era dezembro, quase Natal...

Maria Videira (Mara Cepeda)

segunda-feira, 10 de dezembro de 2012

Afogar-me-ei

apetece-me escalar montanhas
sem olhar para baixo
o horizonte é o caminho
que quero percorrer
sem falsos pruridos puritanos

apetece-me sulcar os mares ancestrais
repletos de monstros horrendos
sem sequer molhar a fimbria da minha capa
encarnada
e descobrir novos mundos

se pudesse, seria astronauta
em frágil foguetão
num pesado fato protetor
que não oferece proteção
alguma

a realidade que tenho
queda-se pelo meu quintal
com árvores despidas
e couves de inverno
cobertas de geada pelas manhãs

não vale a pena subir a escada
para lugar nenhum
não terei pé
afogar-me-ei
num qualquer copo de água

Maria Videira (Mara Cepeda)



quinta-feira, 6 de dezembro de 2012

Eu, perdida

cada vez mais íngreme
a vida,
cada vez mais triste
a hora,
cada vez mais rápida
a desdita
eu, perdida

estendo o olhar pelas encostas
tortas
almejo chegar
lágrima aguarda ao canto do olho
que a tristeza se esboroe
e desvaneça
levada por vendavais improváveis

Maria Videira (Mara Cepeda)

quarta-feira, 5 de dezembro de 2012

Escultura

Só a natrureza é capaz de nos oferecer estas belíssimas esculturas!

(Foto: Maria Videira, Brito de Baixo, algures no Outono)
Quem me dera poder esculpir esta deusa que, gratuitamente, me oferece a Mãe Natureza!

terça-feira, 4 de dezembro de 2012

Noite

Na noite que vivo, nem uma luz se vê
A pomba, não existe
os prisioneiros morrem,
os poucos,
lentamente,
na cela cheia
de vazios.
Por vezes imita o mar
que adormece os navios
de mastros partidos,
bandeiras rasgadas
que velam na calmaria revolta
dos ventos

E tudo é noite
e na noite
o azul do mar
é negritude.

Maria Videira

Grito

Através da janela embaciada
o horizonte não existe
os sonhos também não

Uma densa e fria névoa
envolve as pessoas, curvadas
sob o peso do não ser

Somos quadrículas,
na aritmética da vida,
explodindo dígitos

Um grito
uma janela pequena e só
o azul que pressente

Medos ancestrais,
que apenas grito
sufocados ais

Maria Videira

Fingimento

O que sinto, não faz mal nem bem
Não pesa na balança ou contrato comercial
só no coração, na alma

Poderia ser, talvez, diferente,
pisar firmemente o chão
que ao de leve piso
Faz vento sempre, chove
tudo está molhado e triste
Sou chuva. Sou vento.

Nada sinto do que finjo

Maria Videira


Melancolia

Melancolia
De um dia que chora
Na manhã sem hora
Na tristeza d’ alma
Que me oprime a calma
Que já não tenho.

Chuva
Pinga pingando
Pela noite fria
Sem cria,
Sem amor.

Maria Videira (Mara Cepeda)

Outono

As folhas, verdes ainda, cobriam o chão profusamente.
Pisava-as com gosto, confesso.
Brincava com elas, aos pontapés,
e voejavam, como se pequenas borboletas fossem.

O sol outonal brilhava esplêndido, glorioso,
depois de uma noite bem chovida, triste, serena até.
Apetecia dançar como uma qualquer infantil fada
de asas azuis e transparentes,
varinha de condão a semear magia.

Que ânsia de ser livre tenho!
Calco a meus pés as folhas que continuam a cair,
lenta, mas persistentemente, naturalmente,
já que é outono.

Fecho os olhos.
São horas de voltar à normalidade do meu dia.
As folhas continuam iguais porque são folhas
apenas diferindo nas suas cores.
São velhas já, mas tanto faz...

Maria Videira (Mara Cepeda)

sábado, 1 de dezembro de 2012

O touro

(Continuação: "Inverno")

Tentei correr na neve macia, ainda quase imaculada. Não consegui. A perna doía-me mais do que eu quereria. Aos poucos a dor foi atenuando e, se não conseguia correr, saltitava alegremente.
Apercebi-me de que era cedo para levantar num dia de inverno, no entanto, havia no ar um alarido, um revoluteio de gargalhadas e gritos infantis que faziam esquecer tudo o resto. Não havia sono, apenas olhos imensamente abertos para absorver a beleza daquele dia.
"Ana, não vás prá rua assim. Anda cá rapariga!"
A menina não fez caso dos apelos da mãe. Mal vestida e mal calçada, enterrou as suas pequenas mãos na brancura fria que atapetava o chão.
"Raças na garota que não sei o que lhe faça!"
Uma mão firme agarra-a e faz com que se volte. O pai ri-se e, como se de uma leve pena se tratasse, levanta-a pelo ar e entrega-a à mãe que a recebe nos braços cheios de roupa.
"Não vês que não podes ir assim que ficas doente, filha? Vem vestir o casaco e calçar as botas. Depois podes ir brincar."
"Ah, mãe!"
Relutantemente, lá deixou que a vestissem, sempre com o olhar preso nos amigos que riam a bom rir, divertidos a atirarem com neve uns aos outros.
Encontrámo-nos na rua, ou melhor, chocámos, caindo uma para cada lado, naquela macieza de flocos, rindo prazerosamente. Não perdemos tempo a juntar-nos aos nossos camaradas. Num ápice entrámos na brincadeira e corremos pela rua acima até perdermos o fôlego.
Todos à uma, sem conseguir respirar, atirámo-nos para o chão e, instantantaneamente, fez-se silêncio.
Tudo parou. Fechei os olhos e foi como se tivesse saído do meu corpo. A serenidade tomou conta de todos nós. Apenas existíamos naquele sonhar acordado.
Uma mão cheia de neve estalelou-se no meu rosto. Manel corria e ria como se fosse a última coisa que faria na sua vida.
Como se uma mola me impulsionasse, agarrei em duas mãozadas de neve e desatei atrás dele. Parecia um revoar de passarinhos novos, uns atrás dos outros, tontos, felizes...
Já não era imaculada a brancura. A nossa presença e as nossas brincadeiras marcaram-na, irremediavelmente.
Um grito de alerta despertou-nos. Tresmalhámos, cada um para seu lado. A aflição estampada nas nossas geladas e afogueadas faces.
Vindos da Portela, os urros e a fuga desenfreada de um touro. O boieiro, vara na mão, tentava em vão pará-lo.
Vários homens saíram do aconchego das suas casas com a intenção de ajudar. Preparavam o cerco ao animal. Gritos, braços no ar...
O enorme animal bufava descontroladamente. Batia com as patas poderosas no empedrado, arremetia contra tudo e todos.
As mães gritavam pelos filhos dizendo-lhes que não saíssem de onde estavam. Cada um de nós tentava proteger-se onde lhe parecia estar menos exposto. Uns tinham subido escadas a correr, outros escondiam-se nas soleiras das portas, alguns tentavam colar-se às paredes como se assim ficassem invisíveis...
A minha mãe estava lívida. No meio daquela imensa brancura, destacava-se o meu belo casaquinho vermelho, no patamar das escadas da tia Engrácia. Estava tão desamparada como um pequeno porco-pisco num fino ramo de árvore, açoitado pelo vento inclemente.
A tensão respirava-se ruidosamente. Por breves instantes, viveu-se um hiato de tempo, sem pensamentos, sem palavras, sem vento...
Um casaco vermelho rodopiou como se impulsionado por um pequeno tornado. Um baque surdo. Um grito angustiado, mais homens, mais gritos, mais alarido... o cerco ao touro, consumado, a vara brandida com os agilhões enterrados na carne do animal.
A mãe, asas nos pés, em busca do ponto vermelho no branco do chão...
"Oh meu Deus! Oh meu Deus!"
"Está morta a menina! Está morta."
"Santo Deus! Ajudem-na!"...
As mulheres gritavam frases soltas, ais e uis, corriam sem saber para onde... ou abraçavam os filhos ou lhes davam delicadas nalgadas seguidas de afagos nos cabelos, aliviadas por estarem sãos e salvos.
Nenhuma delas teve coragem de se aproximar da mãe e da filha que jazia, imóvel, num amontoado de roupa, donde sobressaía o vermelho.
A minha mãe levantou-me. Abri os olhos assustados e abracei-a. Nem um único arranhão, nada...
Não tenho lembrança consciente deste episódio. Sei que aconteceu porque me contaram várias vezes essa história...
Confesso que quando vejo um bovino, me tremem as pernas e o coração acelera.

Maria Videira (Mara Cepeda)