quarta-feira, 28 de novembro de 2012

Desde manhã...

Desde manhã, corria todas as ruelas da aldeia com as outras crianças. Os pais nunca sabiam onde estavam os filhos e, por mais que tentassem, era muito difícil saber. Nada os segurava. Ti Ana, viu a minha menina? Não sei dela desde manhã. Vi-a passar com os outros lá para os lados da Pereira. Vou ver se a encontro. Até logo ti Ana.
Os meninos e meninas daquele tempo eram livres como pássaros. Seriam a essência da liberdade se não tivessem fome e sede. Por isso brincavam e corriam. Os roncos dos seus pequenos estômagos enganavam-se com as amoras das silvas e as azedinhas das paredes.
Era verão, agosto, o calor, naquela aldeia cercada por montes junto ao rio Tuela era quase insuportável. As ruas eram pó. Todas as fontes de mergulho estavam secas. No ribeiro da Calçada nem gota. Os animais sofriam, as pessoas também. Mal havia água para matar a sede. As mulheres, madrugada dentro, saiam das suas camas para tentar recolher alguma água, produzida pela semi frescura da noite. Para arranjar dois cântaros de água corriam-se todas as fontes. Os grilos e as cigarras cantavam, os vaga-lumes iluminavam a escuridão. Ao longe uivavam os lobos, também sedentos, também com fome.
Os homens dormiam inquietos, as crianças sonhavam sonhos perfeitos.
Raiava o dia. A aurora espreguiçava-se lentamente, sacudia os cabelos dourados e sorria. Homens e mulheres, meios sonâmbulos, vestiam as delidas e remendadas roupas e saiam para o campo antes que "quecesse". Algumas crianças dormiam ainda, outras iam com os pais e avós, tios e tias.
Tão pequenos e já trabalhavam como adultos. Francisco tinha sete anos e lavrava a terra com a parelha de vacas. Era tão franzino que mal se via mas, os animais sabiam quem mandava. A charrua pesava como chumbo e o ferro cortava a terra exangue.
A avó contava esta e outras histórias dos seus filhos, meu tios e meu pai. O tio Francisco, em particular, era o meu preferido, aquele a quem mais amava e sofria com o seu sofrimento passado como se me tivesse acontecido.
Desta vez não estava com os outros meninos que passarilhavam pelos campos. Mãe, estou aqui! Até logo avó.
Correu para a rua, envolveu a mãe num imenso abraço, olhos turvados de lágrimas.

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