sábado, 17 de novembro de 2012

Natália


Natália nasceu, já lá vão setenta e sete anos, em 1935, antevéspera da 2ª Grande Guerra, numa pequenina aldeia do concelho de Vinhais, distrito de Bragança, no interior profundo.
Filha de mãe solteira, não conheceu a ostracização. Acolhida no seio da pequena comunidade, cresceu sem fome, mal vestida, mal agasalhada, acarinhada pelos afagos sem jeito da mãe que apenas vivia para a filha e para os sobrinhos órfãos, que assumira como seus.
Maria era o nome da sua mãe que trabalhava de sol a sol em casas que não a sua, tecendo cestas e cestos, canastras e açafates, que naquele tempo serviam para todo o tipo de atividades e eram indispensáveis em qualquer casa.
A vida de Maria era feita de muitos quilómetros percorridos, muitas vezes só, exposta a todos os perigos e muitas ausências. Felizmente, levava sempre Deus consigo e nunca sofreu danos maiores do que o cansaço extremo dos muitos trabalhos a que deitava mão para o sustento da sua numerosa prole. Passava muito tempo fora de casa, pousando em casas alheias de muitas aldeias, acolhida no seio de famílias que valorizavam o seu labor, ou em outras, poucas, que a tratavam como se fosse quase nada, obrigada a dormir onde houvesse alguma palha para se proteger do frio. Era assim que sustentava a sua filha e os quatro sobrinhos. Recebia agradecida o que lhe davam, quase sempre em géneros, uma ou outra vez em dinheiro...
Era artesã de mão cheia. Os seus trabalhos, únicos, marcaram quem deles usufruiu. Nunca lhe faltava trabalho. Trabalhava bem, era humilde e educada. A sua delicadeza e bondade desarmavam.
Sempre a pé, levava carregos difícies de suportar até para alguém mais alto e mais forte que ela. Maria era uma mulher pequena e magra, de aparência frágil. No entanto, nunca falhou. Nunca faltou aos seus compromissos. Falava pouco mas tinha muitos amigos. Quando a filha ainda era pequena, levava-a consigo e eram tratadas como se fossem família na maioria das casas para onde iam. A menina, muito bonita, encantava todos os que a viam, mesmo maltrapilha, remendada, pouco agasalhada, mal calçada... os outros pouco melhor andavam é verdade. 
Maria a todos protegia de possíveis males. Era a fada que abastecia os louceiros desprovidos do mínimo essencial à sobrevivência.
A ti Maria a todos ia dando, às escondidas, o suficiente para amenizar a fome a muitas famílias da aldeia. Se ela tivesse, os mais necessitados também tinham. Nas suas mãos, parecia haver o milagre da multiplicação dos pães. Todas as crianças da aldeia conheciam a ti Maria e a sua casa. Quando a fome era muita, batiam-lhe à porta e ela aparecia sempre com o seu sorriso habitual, sempre com uma palavra de carinho...
Natália a tudo assistia, sem entender muito bem, pois nem sempre havia fartura na sua casa. Era muito menina quando teve de tomar as rédeas do pequeno casebre onde viviam. Mal conseguiu por a panela ao lume, deixou de ir com a mãe nas suas empreitadas de trabalho. Começou a zelar pelo que a mãe recebia para que não lhes faltasse. A mãe deixava de comer para dar aos outros.
A miséria era tanta naquele tempo que nem mesmo o pão de centeio, amargo como a morte, era suficiente para todos. Poucas famílias havia que pudessem gabar-se de ter pão com fartura. Ainda hoje, Natália não come centeio. Diz que o facto de o ver, tem o condão de a transportar para esses tempos de grandes carências e muito trabalho. O pão que todos comiam, alguns apenas eventualmente era, segundo ela, quase impossível de comer, mas a fome era tanta que se comia o que se encontrava.
Não que ela tivesse fome, que não tinha. A mãe nunca deixou que isso acontecesse. Havia sempre algo para comer em casa, mesmo que apenas um caldo temperado com unto e um carolo amargoso de centeio ou um cibinho de queijo, um isco de qualquer coisa, uma chouriça de boxe, um azedo com couves e batatas, ovos das poucas galinhas que tinham. Havia sempre umas batatas com couves e um fio de azeite, umas castanhas cozidas ou assadas, umas nozes com pão, uns figos secos... não, Natália nunca passou fome.
Natália ainda tem muito para nos contar...

Maria Videira

   

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