Parece que foi ontem. Num dia frio como o de hoje, com este sol enganador, levantei-me e abri a janela como todos os dias fazia. Senti o ar gelado na cara e, rapidamente voltei a fechar as portadas. Decidi que eram horas de fazer alguma coisa e, depois de dar uma lavadela ao rosto e às mãos, a água estava fria, muito fria, vesti-me e fui para a cozinha, onde, felizmente, já crepitava um excelente lume.
A avó, sentada no seu tripé habitual, entretinha-se com um bocadinho de pão com marmelada dura, daquela que é ótima para comer com queijo. O avô, sentado no escano que ele próprio fizera há muitos anos, tinha o pão encostado ao peito, seguro com a mão esquerda e, na direita, a sua palaçoulo a cortar um bom carolo. Dei os bons dias e cheguei-me ao lume para me aquecer.
"Queres pão, garota?" "Quero avô."
Pousou o bocado que havia cortado para si num prato onde descansava um boa tira de carne de porco, gorda, de que o meu avô gostava muito, pesem embora todos os protestos da minha tia. Deu-me um bocado com bastante codea e disse-me para ir buscar alguma coisa para lhe juntar. Felizmente, ali não faltava que comer. O trabalho era muito, mas havia fartura.
O calor emanado da lareira fez-me bem. Senti-me confortada, acarinhada. Um agradável cheirinho a café chegou-me às narinas. Ia acordando, lentamente, da modorra de uma noite mal dormida. Fui buscar a minha caneca. Com a concha que estava dentro do pequeno pote, enchi-a até quase transbordar. Adocei-o com aquele açúcar escuro que, apenas ali, me sabia bem e o primeiro gole que dei foi como se o dia acordasse verão quente de agosto. Sentei-me, fechei os olhos, encostei a cabeça às costas do escano e aproveitei o momento.
O mundo podia acabar enquanto eu estivesse ali. O prazer simples daquela manhã de inverno, persegue-me como uma saudade boa.
"Então não comes, filha?" Ouvi a minha avó dizer-me, como se estivesse muito longe. Abri os olhos devagar e respondi que sim. Ato contínuo, peguei na grelha que o meu avô tinha utilizado para grelhar a carne e coloquei nela o meu pão para o torrar. Voltei a sentar-me, agarrei-me à minha caneca de café e fui bebericando, enquanto ia virando o pão para que não se queimasse.
No lar não faltava a azeiteira pequena, sempre à mão para temperar os potes. Fui buscar um prato e lá coloquei a minha torrada que untei com o azeite dourado da nossa colheita.
Comi, consolada, a minha rica torrada. Servi-me de mais café, forte e aromático como eu gosto. Aproveitei o calor do fogo e decidi que eram horas de acordar a minha tia. Tínhamos um compromisso e era necessário cumpri-lo. Dirigi-me ao seu quarto e bati à porta. Ouvi uma resposta sonolenta. "Anda, temos de ir ter com a tia Engrácia. Já te esqueceste?" "Não, não me esqueci. Já vou."
Não muito tempo depois, lá apareceu ela, a bocejar, já vestida, encolhida de frio. Como eu, chegou-se ao lume e aqueceu-se. Fui buscar uma caneca que enchi com o fumegante café e coloquei-lha nas mãos. Bebericou. Sentou-se. Comeu...
"Mãe, é capaz de nos fazer o almoço?" "Sou filha. Não te preocupes." "Coza umas batatas com couve troncha e asse umas alheiras. Já é altura de as provarmos. Vamos lá, então."
Agasalhámo-nos e saímos para o frio. A casa da tia Engrácia não era longe. Após alguma ginástica para nos livramos das poças de lama, lá chegámos. A azáfama era grande. O mulherume ruídoso e alegre. Era dia de fumeiro e a minha tia era especialista em temperar as alheiras. A tia Engrácia não queria mais ninguém para essa função. Para mim, era uma aprendizagem. Nunca tinha feito nada disso e, portanto, tudo era novo e único.
Esse dia ficou-me na memória das boas recordações. Os cheiros, os sabores, os rituais tão antigos como sábios do nosso povo, ensinaram-me mais do seu valor. Aprendi a valorizar o que até ali, conotava como estranho e bizarro. Dei valor às saudades da minha mãe que sempre nos falava das coisas da sua terra e da sua juventude.
Era inverno. O contraste entre o calor que se sentia dentro de casa e o frio da rua, tornava tudo mais especial. Havia, apenas, o vazio das cartas por escrever que a minha alma inquieta ansiava urgentemente. Era necessário contar estas coisas aos meus irmãos, relatá-las à minha mãe. Dizer ao meu pai que não se preocupasse que eu estava bem...
O Natal e o Ano Novo tinham passado. Estive só, embora acompanhada. Nada mais havia a fazer...
Maria Videira (Mara Cepeda)
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