Nem mesmo os dias gelados dos invernos transmontanos tinham a capacidade de me desmotivar. Tudo se guiava pela minha grande alegria, pela felicidade da minha vida simples, cheia de amor e carinho. Na minha inocência de cinco anos, todas as crianças do mundo eram como eu: felizes.
Mas, naquela manhã, o meu mundo desmoronar-se-ia como um castelo erguido na areia.
Como estivesse muito frio, em consequência da grande nevada caída no dia anterior e da posterior geada daquela noite, encontrava-me em casa ao calor da lareira com a minha mãe. Entretinha-me a brincar com uma pequena boneca de trapos, prenda do Menino Jesus. A mãe atarefava-se na organização da empreitada de chouriços que se levaria a cabo nessa tarde noite. A minha avó demorava-se em Penhas Juntas em casa dos Almendras onde fazia os cestos e cestas necessários para a lida doméstica e do campo. Contávamos com ela esse dia e é certo que estávamos cheias de saudades.
Era um dia sereno, aquele. De repente, um grito angustiado corta o ar. Um corre-corre de pessoas alvoraçadas na rua. Um choro histérico. Uma sensação ancestral de fim do mundo... não sei... o meu coraçãozinho apertado dizia-me que nunca mais seria a mesma.
A minha mãe pegou em mim e saímos as duas para a rua, assustadas e aflitas. Não estávamos preparadas para o que vimos.
Lucinda, de joelhos enterrados na neve e no gelo, gritava palavras sem nexo, loucas palavras ditadas pela dor mais profunda que uma mãe pode sentir.
No chão frio, um pequeno cadáver ensanguentado, informe, irreconhecível...
Levei algum tempo a assimilar e compreender o que se passava. Não era natural, não no meu mundo fantástico e único.
Depois de alguns instantes, consegui ver a pequena mão e os cabelos encaracolados e loiros do Rodrigo. Não se mexia. Estava alvar. Exangue. O pai, encostado à parede da casa, segurava, ainda, a espingarda na mão trémula. Quase tão branco como o filho, tinha no olhar um vazio tão profundo, que parecia não ter alma.
Tinham ido à caça os dois. Era o batismo de fogo do menino de nove anos.
Nada o poderia ter feito mais feliz do que ir à caça com o pai. Nada. A jornada
tinha corrido bem até chegarem ao Souto. Havia uma praga de javalis que comiam
tudo o que encontrassem e, como era inverno, estavam esfomeados. O pai
havia-lhe dito que, quando lhe desse sinal, teria de se esconder e ficar muito
quieto até ouvir os tiros.
O primeiro soou atroador e certeiro. O animal, atingido pelo projétil,
precipitou-se em fuga desenfreada, na direção do esconderijo do rapaz. O pai
apercebeu-se, tarde de mais, do perigo. Atirou novamente com a intenção de
parar o bicho, macho possante e enorme. No mesmo instante, o menino ergue-se
para fugir, ao mesmo tempo em que o javali muda de trajetória, assustado...Eram uns bons dez quilómetros de caminho. O homem correu para o filho, ainda vivo. Ergueu-o nos braços fortes e saiu dali como se o desespero lhe desse asas. Viu quando o filho fechou os olhos e exalou o último suspiro. Parou, deitou-o no chão gelado, olhou para trás e apercebeu-se de um caminho de sangue na brancura nevada. Esteve assim, ajoelhado ao pé do rapaz, longos minutos. O silêncio era tão pesado que nem os seus soluços arrancados do mais profundo das suas entranhas o conseguiam quebrar. Morrera, também. Nunca mais seria homem. Nunca mais abandonaria o seu olhar vazio, perdido.
Ao longe ouviu o chiar de um carro de bois. Não se apercebeu da sua chegada. A mão rude colocada no seu ombro, despertou-o do seu abandono. Olhou, primeiro sem ver. Depois, lentamente, reconheceu o Zé Tarela que pegou no pequeno corpo sem vida e o colocou no carro, em cima de uma saca que ele tivera o cuidado de ajeitar para o receber com alguma dignidade. O carro ia carregado nabos. No chão, uma poça de sangue.
Elias parecia um autómato. Seguiu atrás do carro com a arma na mão e o saco da merenda ao ombro.
Faltava metade do caminho para chegarem à aldeia. Nenhum dos homens falou. O chiar do carro na imensidão dos montes, refletia a enorme tristeza.
Maria Videira (Mara Cepeda)
Sem comentários:
Enviar um comentário