domingo, 30 de dezembro de 2012

Feliz 2013

A todos os que fazem o favor de me acompanhar nesta pequena empreitada, desejo um Ano Novo repleto de realizações pessoais.

Obrigada
Maria Videira

quinta-feira, 13 de dezembro de 2012

Aquele dezembro...

"Estou prenha, Engrácia. Sei que estou... e agora ele vai embora. O que será de nós?"
"Fala com ele. Diz-lhe isso."
Natália chorava. Não sabia como reagiria a sua mãe. Naquele tempo, a desonra por se ter um filho fora do casamento, era como entrar na Idade Média.
Sabia que não ia ser fácil. Tinha, no entanto, algumas armas que, contava, lhe poderiam valer. Era boa rapariga e todos sabiam que nunca tinha tido mais ninguém. José fora o seu primeiro e único namorado. Se não fosse a família, já poderiam estar casados mas, para os padrões de então, ela não estava à altura dele. Era pobre. Não tinha um pai que a defendesse. A sua casa seria, por ventura, uma das mais abastadas da aldeia em termos de alimentação. Não lhe faltava que comer. Não havia dinheiro, nem grandes terras, nem grandes alianças.
A sua querida e trabalhadora mãe, órfã desde tenra idade, tinha sobrevivido com muita luta. Fora enganada, haviam-lhe suprimido os seus bens e ela não tinha quem por ela pudesse ou quisesse pugnar. Os melhores bocados da herança, engrossaram o rol de bens do cunhado.
Natália fazia o que podia. Trabalhava as poucas terras que tinham com o apoio intermitente dos primos e do irmão. Não lhes faltavam as batatas, o feijão, as cascas, os erbanços..., havia sempre umas couves de inverno e o mais que davam as hortas no tempo delas.
Tinham nozes e figos secos para os dias frios de inverno, as castanhas piladas que se aguentavam até ao verão, as azeitonas curadas na perfeição e o fio de azeite proveniente das poucas oliveiras que tinham.
Normalmente criavam uma ou duas porcas que sempre rendiam uns leitõezinhos e o rico fumeiro vinhaense e todos os derivados deste imprescindível animal que faziam a diferença entre a fome e a fartura.
Na capoeira, sempre uma meia dúzia de pedrezas e um belo galo cobridor. Não faltavam os ovos e os pitos sempre que havia uma necessidade. Criavam, também, alguns perus, delicados de criar. Era necessários apanhar as urtigas com que faziam a papa que, por vezes, era necessário enfiar-lhes pelas goelas abaixo enquanto eram pequenos...
O resto, vinha do trabalho da mãe, a tia Maria cesteira, à qual pagavam em géneros e, às vezes, com algum dinheiro.
Definitivamente, viviam melhor do que muitas famílias mais abastadas da aldeia. Não tinham luxos e o pão que comiam era o amargoso centeio, quase intragável. Ainda hoje não o come, embora não tenha nada a ver com o centeio da sua infância e juventude.
As lágrimas não paravam de lhe sulcar o rosto jovem e belo. Era, definitivamente, bela...

Maria Videira (Mara Cepeda)

terça-feira, 11 de dezembro de 2012

Era dezembro, quase Natal...

O Natal não demorava a chegar. Dezembro havia começado, carrancudo, arisco...
A mulher vinha ligeira, denotava pressa e algum desconforto. Passou como um fantasma pelas pessoas que, ao vê-la passar, branca, pálida, ficavam com o cumprimento a meio, suspenso num limbo de incerteza e aflição.
Entrou em casa e, finalmente, chorou como se todos os diques tivessem rebentado ao mesmo tempo em todo o mundo. O desespero vertido em lágrimas grossas, molhava-lhe o rosto e as mãos. Um grito escapou-lhe da garganta onde já não podia estar. Tudo havia acabado. Era o fim. Nada mais importava.
Natália pouco passava de ser uma menina. Não entendia porque razão lhe pesava tanto aquele sentimento. Era como se o estômago se lhe comprimisse cada vez mais até quase deixar de existir.
Não podia ser verdade. Não assim.
Que poderia ela fazer?
Como conseguiria sobreviver ao intenso sofrimento que a aniquilava?
Morreria... era certo que morreria.
Sentia dentro de si, que já não estava só. Sabia que estava grávida, mesmo que apenas o intuísse.
Que seria dela agora?
Como poderia continuar a viver?
O Natal aproximava-se, inexoravelmente. Não que os seus natais fossem, de alguma forma para recordar. Balizavam-se pela mesma pobreza de sempre, menos intensa porque havia sempre o bacalhau e o polvo, pão fresco, um pão-de-ló e umas filhoses.
Vinham os dois primos que ainda não tinham família e o meio irmão. A mãe esperava que ela fizesse tudo e ela fazia, mesmo morta por dentro.
O frio era aterrador. Nem o enorme lume que se erguia no meio do lar conseguia aquecê-la. Valiam-lhe os primos e o irmão que lhe traziam a lenha para casa.
Amanhã era feira em Vinhais. Tinha de ir. Era preciso comprar as coisas para a consoada. Precisava de uma saia e de um casaco mais quente. Tinha de comprar lã para tricotar meias. Talvez uns socos...
Esvaíasse por dentro. Oca como uma concha vazia.
Ele ía para o Brasil... Como pudera pensar nisso? Como?
Trazia no ventre o fruto do seu amor. Como poderia justificar a sua leviandade perante a pequena aldeia?
Não podia ser verdade. Porque não podiam ir juntos?
O que seria dela e do filho quando Deus lhe mostrasse a luz do mundo?
Não havia esperança. Morreria...
"Que tens tu, rapariga?" "Que tens mulher?" "Que desespero é esse?"
Engrácia sofria por vê-la naquele estado e não poder fazer nada. Sabia do que se tratava. O Zé ia para os brasis, chamado por uns primos que lá tinha. Era corajoso o rapaz. Tinha de ir porque ali não havia futuro. Sentia-se preso, angustiado...
Natália secou as lágrimas inclementes, mostrou os olhos tão profundamente tristes que se fez noite sem estrelas no seu olhar.
"Estou grávida, Engrácia."
Era dezembro, quase Natal...

Maria Videira (Mara Cepeda)

segunda-feira, 10 de dezembro de 2012

Afogar-me-ei

apetece-me escalar montanhas
sem olhar para baixo
o horizonte é o caminho
que quero percorrer
sem falsos pruridos puritanos

apetece-me sulcar os mares ancestrais
repletos de monstros horrendos
sem sequer molhar a fimbria da minha capa
encarnada
e descobrir novos mundos

se pudesse, seria astronauta
em frágil foguetão
num pesado fato protetor
que não oferece proteção
alguma

a realidade que tenho
queda-se pelo meu quintal
com árvores despidas
e couves de inverno
cobertas de geada pelas manhãs

não vale a pena subir a escada
para lugar nenhum
não terei pé
afogar-me-ei
num qualquer copo de água

Maria Videira (Mara Cepeda)



quinta-feira, 6 de dezembro de 2012

Eu, perdida

cada vez mais íngreme
a vida,
cada vez mais triste
a hora,
cada vez mais rápida
a desdita
eu, perdida

estendo o olhar pelas encostas
tortas
almejo chegar
lágrima aguarda ao canto do olho
que a tristeza se esboroe
e desvaneça
levada por vendavais improváveis

Maria Videira (Mara Cepeda)

quarta-feira, 5 de dezembro de 2012

Escultura

Só a natrureza é capaz de nos oferecer estas belíssimas esculturas!

(Foto: Maria Videira, Brito de Baixo, algures no Outono)
Quem me dera poder esculpir esta deusa que, gratuitamente, me oferece a Mãe Natureza!

terça-feira, 4 de dezembro de 2012

Noite

Na noite que vivo, nem uma luz se vê
A pomba, não existe
os prisioneiros morrem,
os poucos,
lentamente,
na cela cheia
de vazios.
Por vezes imita o mar
que adormece os navios
de mastros partidos,
bandeiras rasgadas
que velam na calmaria revolta
dos ventos

E tudo é noite
e na noite
o azul do mar
é negritude.

Maria Videira

Grito

Através da janela embaciada
o horizonte não existe
os sonhos também não

Uma densa e fria névoa
envolve as pessoas, curvadas
sob o peso do não ser

Somos quadrículas,
na aritmética da vida,
explodindo dígitos

Um grito
uma janela pequena e só
o azul que pressente

Medos ancestrais,
que apenas grito
sufocados ais

Maria Videira

Fingimento

O que sinto, não faz mal nem bem
Não pesa na balança ou contrato comercial
só no coração, na alma

Poderia ser, talvez, diferente,
pisar firmemente o chão
que ao de leve piso
Faz vento sempre, chove
tudo está molhado e triste
Sou chuva. Sou vento.

Nada sinto do que finjo

Maria Videira


Melancolia

Melancolia
De um dia que chora
Na manhã sem hora
Na tristeza d’ alma
Que me oprime a calma
Que já não tenho.

Chuva
Pinga pingando
Pela noite fria
Sem cria,
Sem amor.

Maria Videira (Mara Cepeda)

Outono

As folhas, verdes ainda, cobriam o chão profusamente.
Pisava-as com gosto, confesso.
Brincava com elas, aos pontapés,
e voejavam, como se pequenas borboletas fossem.

O sol outonal brilhava esplêndido, glorioso,
depois de uma noite bem chovida, triste, serena até.
Apetecia dançar como uma qualquer infantil fada
de asas azuis e transparentes,
varinha de condão a semear magia.

Que ânsia de ser livre tenho!
Calco a meus pés as folhas que continuam a cair,
lenta, mas persistentemente, naturalmente,
já que é outono.

Fecho os olhos.
São horas de voltar à normalidade do meu dia.
As folhas continuam iguais porque são folhas
apenas diferindo nas suas cores.
São velhas já, mas tanto faz...

Maria Videira (Mara Cepeda)

sábado, 1 de dezembro de 2012

O touro

(Continuação: "Inverno")

Tentei correr na neve macia, ainda quase imaculada. Não consegui. A perna doía-me mais do que eu quereria. Aos poucos a dor foi atenuando e, se não conseguia correr, saltitava alegremente.
Apercebi-me de que era cedo para levantar num dia de inverno, no entanto, havia no ar um alarido, um revoluteio de gargalhadas e gritos infantis que faziam esquecer tudo o resto. Não havia sono, apenas olhos imensamente abertos para absorver a beleza daquele dia.
"Ana, não vás prá rua assim. Anda cá rapariga!"
A menina não fez caso dos apelos da mãe. Mal vestida e mal calçada, enterrou as suas pequenas mãos na brancura fria que atapetava o chão.
"Raças na garota que não sei o que lhe faça!"
Uma mão firme agarra-a e faz com que se volte. O pai ri-se e, como se de uma leve pena se tratasse, levanta-a pelo ar e entrega-a à mãe que a recebe nos braços cheios de roupa.
"Não vês que não podes ir assim que ficas doente, filha? Vem vestir o casaco e calçar as botas. Depois podes ir brincar."
"Ah, mãe!"
Relutantemente, lá deixou que a vestissem, sempre com o olhar preso nos amigos que riam a bom rir, divertidos a atirarem com neve uns aos outros.
Encontrámo-nos na rua, ou melhor, chocámos, caindo uma para cada lado, naquela macieza de flocos, rindo prazerosamente. Não perdemos tempo a juntar-nos aos nossos camaradas. Num ápice entrámos na brincadeira e corremos pela rua acima até perdermos o fôlego.
Todos à uma, sem conseguir respirar, atirámo-nos para o chão e, instantantaneamente, fez-se silêncio.
Tudo parou. Fechei os olhos e foi como se tivesse saído do meu corpo. A serenidade tomou conta de todos nós. Apenas existíamos naquele sonhar acordado.
Uma mão cheia de neve estalelou-se no meu rosto. Manel corria e ria como se fosse a última coisa que faria na sua vida.
Como se uma mola me impulsionasse, agarrei em duas mãozadas de neve e desatei atrás dele. Parecia um revoar de passarinhos novos, uns atrás dos outros, tontos, felizes...
Já não era imaculada a brancura. A nossa presença e as nossas brincadeiras marcaram-na, irremediavelmente.
Um grito de alerta despertou-nos. Tresmalhámos, cada um para seu lado. A aflição estampada nas nossas geladas e afogueadas faces.
Vindos da Portela, os urros e a fuga desenfreada de um touro. O boieiro, vara na mão, tentava em vão pará-lo.
Vários homens saíram do aconchego das suas casas com a intenção de ajudar. Preparavam o cerco ao animal. Gritos, braços no ar...
O enorme animal bufava descontroladamente. Batia com as patas poderosas no empedrado, arremetia contra tudo e todos.
As mães gritavam pelos filhos dizendo-lhes que não saíssem de onde estavam. Cada um de nós tentava proteger-se onde lhe parecia estar menos exposto. Uns tinham subido escadas a correr, outros escondiam-se nas soleiras das portas, alguns tentavam colar-se às paredes como se assim ficassem invisíveis...
A minha mãe estava lívida. No meio daquela imensa brancura, destacava-se o meu belo casaquinho vermelho, no patamar das escadas da tia Engrácia. Estava tão desamparada como um pequeno porco-pisco num fino ramo de árvore, açoitado pelo vento inclemente.
A tensão respirava-se ruidosamente. Por breves instantes, viveu-se um hiato de tempo, sem pensamentos, sem palavras, sem vento...
Um casaco vermelho rodopiou como se impulsionado por um pequeno tornado. Um baque surdo. Um grito angustiado, mais homens, mais gritos, mais alarido... o cerco ao touro, consumado, a vara brandida com os agilhões enterrados na carne do animal.
A mãe, asas nos pés, em busca do ponto vermelho no branco do chão...
"Oh meu Deus! Oh meu Deus!"
"Está morta a menina! Está morta."
"Santo Deus! Ajudem-na!"...
As mulheres gritavam frases soltas, ais e uis, corriam sem saber para onde... ou abraçavam os filhos ou lhes davam delicadas nalgadas seguidas de afagos nos cabelos, aliviadas por estarem sãos e salvos.
Nenhuma delas teve coragem de se aproximar da mãe e da filha que jazia, imóvel, num amontoado de roupa, donde sobressaía o vermelho.
A minha mãe levantou-me. Abri os olhos assustados e abracei-a. Nem um único arranhão, nada...
Não tenho lembrança consciente deste episódio. Sei que aconteceu porque me contaram várias vezes essa história...
Confesso que quando vejo um bovino, me tremem as pernas e o coração acelera.

Maria Videira (Mara Cepeda)  

sexta-feira, 30 de novembro de 2012

Quem me dera

Quem me dera,
nem que apenas por um breve momento,
poder dizer como tu dizes,
aquilo que me vai na alma

Quem me dera,
calar o meu sofrimento,
esta angústia tamanha,
que se entranha em todos nós

Quem me dera,
um olhar quente e fraterno
embrulhado em esperança,
que urge espalhar a esmo

Talvez nasça e eu cresça
talvez seja
e eu pereça
ou viva de vez o que me apeteça

Maria Videira (Mara Cepeda)


Inverno

Era inverno, daqueles invernos que só Trás-os-Montes sabe ter. O dia acordava com uma grande, imensa nevada que cobria tudo.
O céu pousava-se preguiçoso e pachorrento cobrindo tudo com a sua alvura. Nevaria mais?
Nos beirais reluzia resplandecente a brancura imaculada da neve, serenamente caída durante toda a noite.
Aqui e ali, um porco-pisco deixara a impressão da sua leveza na quase imperceptível marca dos seus pequenos pés.
Porque me daria a mim para reparar nos vestígios do passarinho?
Só algum tempo depois é que me apercebi das pisadas de dois lobos, deduzi eu... com o meu fraco entendimento da nossa fauna selvagem. É certo que os tinha ouvido uivar toda a noite, agoirentos, esfomeados...  
Aos poucos, a aldeia foi acordando. O chilrear da garotada ia em crescendo à medida que se apercebia do imenso recreio colocado à sua disposição.
"Mãe, posso ir brincar?" "Come primeiro um cibo de pão, filho."
Com o carolo de pão na mão lá saiu o Manel, aos pontapés à neve, chamando a todo pulmão pelo Zé, pelo Chico, pela Maria...
Aos poucos não havia criança, grande ou pequena, pelo seu próprio pé ou ao colo dos mais velhos, que não estivesse na única rua da aldeia, ladeada pelas casas das quais emanava um fumo denso de lareira a acender.
Que pena não haver máquina fotográfica! Quantas fotografias eu faria! Que lindos postais poderia guardar!
Não ficou prova física daquele dia. Apenas no meu coração uma marca indelével, única, de que me recordarei para sempre.
Com a minha mãe atrás de mim, saltei do cimo das escadas para a rua. Caí, levantei-me a gargalhar com uma lágrima no canto do olho. O hematoma que fiz na perna direita, levou uns bons quinze
dias a arroxear.
A minha mãe, aflita, a perguntar-me se me tinha ferido, se estava bem...
"Sim, mãe. Não foi nada, mãe. Só me dói aqui um bocadinho..."
Vestiu-me um casaco, enfiou-me um gorro na cabeça, umas luvas nas mãos...
Deu-me um pedaço de pão com marmelada e um beijo. Ela sabia que me tinha magoado, no entanto, não quis ferir o meu orgulho. Trataria de mim mais tarde quando regressasse para casa.
"Vai. Vai lá brincar, mas tem cuidado com as pelotadas..."
Ao começar a andar, senti a dor na perna mas não me importei. Passaria.  
O Natal aproximava-se a passos largos. No ar, uma mensagem diferente, talvez de amor, talvez de esperança...

Maria Videira (Mara Cepeda)


quarta-feira, 28 de novembro de 2012

Desde manhã...

Desde manhã, corria todas as ruelas da aldeia com as outras crianças. Os pais nunca sabiam onde estavam os filhos e, por mais que tentassem, era muito difícil saber. Nada os segurava. Ti Ana, viu a minha menina? Não sei dela desde manhã. Vi-a passar com os outros lá para os lados da Pereira. Vou ver se a encontro. Até logo ti Ana.
Os meninos e meninas daquele tempo eram livres como pássaros. Seriam a essência da liberdade se não tivessem fome e sede. Por isso brincavam e corriam. Os roncos dos seus pequenos estômagos enganavam-se com as amoras das silvas e as azedinhas das paredes.
Era verão, agosto, o calor, naquela aldeia cercada por montes junto ao rio Tuela era quase insuportável. As ruas eram pó. Todas as fontes de mergulho estavam secas. No ribeiro da Calçada nem gota. Os animais sofriam, as pessoas também. Mal havia água para matar a sede. As mulheres, madrugada dentro, saiam das suas camas para tentar recolher alguma água, produzida pela semi frescura da noite. Para arranjar dois cântaros de água corriam-se todas as fontes. Os grilos e as cigarras cantavam, os vaga-lumes iluminavam a escuridão. Ao longe uivavam os lobos, também sedentos, também com fome.
Os homens dormiam inquietos, as crianças sonhavam sonhos perfeitos.
Raiava o dia. A aurora espreguiçava-se lentamente, sacudia os cabelos dourados e sorria. Homens e mulheres, meios sonâmbulos, vestiam as delidas e remendadas roupas e saiam para o campo antes que "quecesse". Algumas crianças dormiam ainda, outras iam com os pais e avós, tios e tias.
Tão pequenos e já trabalhavam como adultos. Francisco tinha sete anos e lavrava a terra com a parelha de vacas. Era tão franzino que mal se via mas, os animais sabiam quem mandava. A charrua pesava como chumbo e o ferro cortava a terra exangue.
A avó contava esta e outras histórias dos seus filhos, meu tios e meu pai. O tio Francisco, em particular, era o meu preferido, aquele a quem mais amava e sofria com o seu sofrimento passado como se me tivesse acontecido.
Desta vez não estava com os outros meninos que passarilhavam pelos campos. Mãe, estou aqui! Até logo avó.
Correu para a rua, envolveu a mãe num imenso abraço, olhos turvados de lágrimas.

Básicos teoremas

O que os meus olhos vêem
não se compadece
com básicos teoremas.
Se o simples e ancestral
rumorejar das pedras do rio
te transmite a alma
da água que passa,
para onde te levam
as suas liquefeitas palavras?

Maria Videira (Mara Cepeda)

Solitária flor

Voltei, disse o vento à solitária flor.
Foi-se embora sem olhar para trás.
Sem mesmo adejar, ao de leve,
as pétalas belas, de azul infindo.
De azul meu e lindo.
Voltei, disse a minha alma depois de uma brisa de amor.
Estou aqui e não torno a ir.
Ficarei, não estando aqui.
Embalei serenamente o teu doce sorriso
soube o quanto te preciso.

Sonhei contigo em hora antiga.
Tentei dormir embalando a cantiga
que a minha avó me cantava, menina ainda.

Chorei invisível a minha dor imensa
tu não viste o que a minha alma pensa.
Corei de enganar o teu olhar tão belo
peguei em meus braços a tua alma triste.

Choraste em mim, lágrimas amargas,
tão belas e doces que o meu corpo esqueceu
auroras antigas onde tudo era breu.
Sorria, ao de leve, na boca vermelha
uma carícia breve, pequena sereia.
Perdi-me de amores,
entoei canções de mel,
pintalguei searas papoilas vermelhas
esperei perdida voejar de abelhas.

Nada. Apenas restolho de ceifas sofridas.
Levanto o olhar para o azul infinito.
Um grito dilacera o delicado equilíbrio
tudo em quimera passou mascarado,
em sala de espera de um qualquer telhado.

Voltei disse a flor ao vento que passa.
Fingiu ir embora sem ter para onde,
levantou a asa e a cabeça esconde.

Vacilam ao vento pétalas tão frágeis
como borboletas voejam ágeis.
É o fim do dia que mal começou
a noite tardia o medo exaltou.

Maria Videira (Mara Cepeda)

Delírio

Definitivamente
Definho

Devo somente
Dever ser assim
Dia que nasce
Ditame ruim

Desdenho
De mim
 
Disputo um lugar
Deveras exigente
Dor de quimeras
Delírio inclemente

Maria Videira (Mara Cepeda)

domingo, 25 de novembro de 2012

Dia de verão

O peixinho ficou no cesto. A alegria era tanta que ela mal se conseguia manter quieta para o apanhar. Com muito cuidado saiu do rio. Escorreu-lhe a água e, lá no fundo, estava um minúsculo peixinho, muito menor que um carapauzinho dos que é proibido apanhar e que, mesmo assim, às vezes, encontramos numa qualquer tasca, frito e acompanhado por um arroz de tomate malandrinho.
Mãe, apanhei um peixe mãe! Olha mãe!
Oh filha, isso é tão pequeno, o que é que vais fazer com ele? Deita-o fora, isso não serve para nada.
Não, mãe, vou levá-lo, vou assá-lo e vou comê-lo ao jantar. 
A mulher ria-se, encantada com as certezas da filha. O que mais desejava era que ela fosse feliz. O pai estava tão longe, lá para o Brasil. Que saudades tinha do único homem da sua vida!
A menina tinha seis meses quando ele se foi embora, portanto não conhecia o pai.
As cartas, apesar de muitas, eram tão poucas! Oh rapariga, olha a tua roupa a ir pelo rio abaixo. Parece que estás no mundo da lua! Esta gente nova...
Obrigada tia Lucinda. Levantou-se, agarrou a saia e foi atrás da roupa que lhe fugia arrastada pela correnteza.
Mãe, o meu vestido! Mãe, olha a saia da avó! E ria-se. Chapinhava na água límpida do Tuela, correndo atrás da roupa.
Quando tudo voltou à normalidade, mãe, filha e demais comandita sentaram-se para comer as singelas merendas. A roupa estava à cora. O sol apertava. Era necessário acabar de a lavar e pô-la  a secar para que, pelo menos, escorresse. O caminho até à aldeia era íngreme e exigente. A trouxa era grande e se a roupa estivesse molhada, mais difícil se tornaria.
As mulheres afadigavam-se para que tudo estivesse pronto a boa hora. As crianças brincavam. A menina guardava cuidadosamente o seu "enorme" peixe.
Fim do dia, lusco-fusco, trouxas atadas e colocadas à cabeça. Ai que isto pesa Senhor!
A subida é penosa. A alegria esvai-se com o cansaço. As crianças já não riem. Vão devagar. Cada uma leva a sua pequena trouxa. Os mais pequeninos vão pela mão das mães. Impressiona a força destas mulheres.
Chegámos, graças a Deus! Até amanhã raparigas.
A menina corre pela rua acima. Leva muita pressa. Ana, oh Ana! Que queres? Olha o que eu trouxe. O quê?
Abriu a pequenina mão e mostrou o peixinho. A tua mãe tem o lume aceso? Tem. Vamos assá-lo? Vamos!
Felizes como um dia de primavera correram para casa e, finalmente, realizaram o desejo de um dia inteiro.
Comeram-no. Nunca mais saborearam nada assim.
Era noite. As estrelas cintilavam no imenso azul, negro como um abismo.

Maria Videira (Mara Cepeda)

Mãe, posso ir?

Mãe, posso ir?
Não filha, hoje não. É muito longe e está muito calor.
Eu quero mãe, por favor.
Não, hoje não.
Era noite ainda. No céu, as estrelas cintilavam contentes, como se dançassem a Danúbio Azul, num imenso salão de baile pintado de azul noite.
A mulher vestia-se. Com uma mão cheia de água lavou o rosto e calçou os gastos sapatos que usava para os trabalhos no campo; dispunha-se a sair.
A menina saltou da cama qual saltão verde dos campos e correu para a porta.
Eu também vou mãe, eu quero ir. Choramingava.
Com carinho, a mulher dizia-lhe que não que não podia. Mais choro, mais teimosia, que teimosa era ela.
A mãe perdeu a paciência, estava atrasada. Os outros esperavam-na já. A caminhada era longa e o dia ia ser muito comprido. O fidalgo tinha muito pão para ceifar. Da aldeia ia uma tropa de vinte, rapazes e raparigas. Deu-lhe uma nalgada e fê-la voltar para a cama.
Saiu para a rua e sentiu frio. A madrugada estava fresca. Corria um vento agreste. Embrulhou-se no delido xaile e disparou pela ruela abaixo. A menina chorou até voltar a adormecer. Não porque lhe tivesse doído aquele sacudir de pó, mas porque estava habituada a que a mãe respondesse, sempre, positivamente aos seus desejos.
Chegou esbaforida junto dos companheiros de jornada. Parece que não querias vir rapariga. Mais um cibinho e íamos embora. Foi a menina, queria porque queria vir comigo. Tive de lhe sacudir o pó para que me deixasse vir. Bem, vamos lá embora rapazes.
Era fim de julho, quase agosto e ainda havia pão para cortar. Era tempo de muito trabalho, de muita canseira. Tinha de ser, o dinheiro fazia muita falta e era quando se ganhava algum.
Era uma vida difícil. Tinham de caminhar muitos quilómetros por dia, de uma aldeia para outra, à procura do seu sustento. Os dias eram quentes como um deserto e desde que se começava a labuta até que se matava o bicho passavam muitas horas.
Bebia-se muito vinho e pouca água. O vinho era farto, a água escassa. O calor era tanto que parecia que o vinho não tinha força suficiente para embebedar e não embebedava. Esvaia-se pelos poros sem deixar mácula.
Quando chegavam as mulheres da casa com o almoço, as mãos eram um prolongamento da foice. Procurava-se uma sombra. As pernas e as costas recusavam-se a dobrar. No entanto, o cheiro bom da comida, alegrava a alma e o estômago. Cantava-se, ria-se, dançava-se ao som do realejo que alguém levava no bolso como fiel companheiro.
Dava-se tempo ao calor para se afastar um bocadinho e a foice voltava à vida. Quase autónoma, independente do pensamento que voava. Uma mulher iniciava um canto e todas as outras a acompanhavam. "Quem canta seus males espanta".
Era verão, quase agosto. Era-se feliz com tão pouco. Sofria-se tanto sem saber!

Maria Videira (Mara Cepeda)

Alegria nova

Meu riso é transparente como um dia azul.
Dentro de mim é Primavera de montes floridos e cantantes regatos.
Minha alma é fluida e cristalina e corre serenamente para o amor que desejo puro.
Nada me confunde na pureza deste azul semeado de cintilantes estrelas e luar genuíno.

Sou.

Minha essência anda por aí a saltitar pequenas flores espontâneas
Tudo o que sinto é um amor infinito por tudo aquilo que vejo.
É Primavera em mim, quase estio
Quase agrura
Quase ternura
Quase ausência
Quase essência

Quero ser Novo Mundo
Porto de abrigo
Enseada serena
Tempestade inesperada
Maremoto de emoções.

Quero ser o que sou não sendo ainda
Vender a ideia de um dia que finda
Para depois renascer cheia de sol e mar azul
Longe, bem longe daquilo que estou.

Maria Videira (Mara Cepeda)

Medo

Medo
Que a cor não reflecte
Na angústia do branco
Escrito de verde.

Secou as lágrimas
Na manga do casaco
Escondeu o vermelho
Que raiava o olhar
E partiu para sim
Te encontrar.

Não sabes que a dor
Para além de oprimir
Impede o grito
Que não podes ouvir.

E o teu sorriso torto
Que eu mais adivinho
Por entre aparatos
De lutas sem fim
Grita a cor
Deste negro festim.

Maria Videira (Mara Cepeda)

terça-feira, 20 de novembro de 2012

Santa Bárbara

A mulher e a filha caminhavam, ligeiras e leves, pelo calor insuportável do meio dia.
Agosto quente, aquele. Tornava a vida difícil a quem não tinha outro meio de subsistir para além do trabalho árduo, nas poucas terras que possuía.
O mais difícil era arranjar água onde nem gota havia. Os tempos eram outros e aquela pequena localidade tinha de se bastar a si própria, já que não existia água de rede.
Só muitos anos mais tarde é que a câmara fez a captação de um enorme nascente localizado no Serro. Hoje não há problemas de falta de água, mesmo quando regressam todos os imigrantes, e são muitos, para matar saudades da sua Terrinha.
Lá vinham elas, abrasadas e céleres, a menina pela mão, já cansada e a pedir colo. A mãe, cansada também, sabia que não podia adiar muito mais, pegar na filha. Que calor inclemente! Porque terei eu trazido este anjo comigo? Nunca mais aprendo.
Mãe, tenho calor e tenho sede. Estou tão cansada!
Está bem filha, vamos lá, só mais um cibinho. Estamos quase a chegar e já bebes água.
Sim, mãe...
Com a menina ao colo, a mulher quase corria. Parecia que qualquer coisa não estava bem, não sabia explicar, era um sentir... uma sensação estranha.
Estava muito cansada. Mais do que ver, intuiu o sol a turvar-se, tudo escureceu, um vento rude e quente fustigava-lhe o corpo. De repente, como se o inferno se abrisse, rebentou a trovoada que estrondeava como se o mundo fosse acabar, os raios cegavam. Começou a chover, bátegas grossas como punhos, quentes como caldo. Em poucos minutos estavam encharcadas. A aldeia nunca mais se deixava ver.
A chuva era tanta e tão forte que em pouco tempo corriam ribeiros pelos caminhos, apareciam pequenas cascatas que galgavam montes e fragas e se despenhavam sem dó onde calhava. Pedras desciam pelos campos em declive. A mãe reflectia no olhar o pavor que sentia.

Minha Santa Bárbara, minha mãe, protege-nos!
Mãezinha, tenho medo!
Já vejo a aldeia filha. Já estamos a chegar. Vamos buscar a Santinha. Vamos pô-la à porta da igreja. Vais ver como a trovoada pára. Podes andar um bocadinho agora?
Colocou a filha no chão e, mão na mão, correram até à pequena capela. A porta, naquele tempo, estava, sempre, aberta. A mulher precipitou-se para o altar de Santa Bárbara. Pegou nela com cuidado e respeito e rapidamente a levou para a porta.
Como por milagre, quase de imediato, a negritude do céu começou a esvair-se, os raios de sol romperam as trevas, a chuva começou a abrandar...

A Santa parecia sorrir. O verão voltava em todo o seu esplendor.
Maria Videira (Mara Cepeda)

Quando o dia ainda dormia...

Por vezes, quando o dia ainda dormia, a mãe tentava que a filha ficasse na cama. Levantava-se o mais silenciosamente possível, leve como uma leve brisa e lentamente saía do modesto quarto onde dormiam, ela, a filha e a avó.
Era um verão, quente, seco, muito seco. As fontes de mergulho, sem água, não respondiam às necessidades mínimas da aldeia. O ribeiro dava os últimos suspiros, ansioso por uma chuvada para retemperar forças. Apenas o rio levava água. Era para lá que queria ir a mulher que, na véspera, tinha feito uma enorme trouxa de roupa para lavar.
Ficava um pedacinho distante e era necessário carregar com o fardo às costas. Por isso queria deixar a menina, ainda tão pequena, em casa, protegida daquele calor infernal. Mal pôs o pé fora do quarto: Mãe, eu também vou.
Não filhinha, ainda é noite escuro, há estrelas no céu. Ficas com a avó, está bem?
Não mãe, vou contigo. Quero pescar um peixinho para assar.
De sono muito leve, ainda hoje assim sou, acordava, pulava da cama, pé no chão, meio despida, agarrada à saia delida da minha mãe, não desistia por nada deste mundo, do meu objetivo.
Sem outro remédio que não levar-me, a minha mãe acrescentava a parca merenda, calçava-me as chinelas, vestia-me o vestido e lá íamos as duas, noite estrelada, ao encontro das outras mulheres que também iam lavar ao rio.
Caminhávamos em grupo, silenciosamente, pelo caminho empoeirado, emanando ainda, alguma-pouca frescura. A manhã mostrava já, ténue claridade. Raiavam pequenos braços de sol e as mulheres iam aumentando o tom de voz à medida que o dia clareava. As crianças riam e saltavam como cabritinhos.
Descia-se até ao rio Tuela, de águas límpidas e cristalinas, onde, de mão em concha, qualquer um matava a sede. Onde os pescadores apanhavam a bela truta, as enguias vivas e demais peixes que abundavam nos nossos rios de então.  
Lá chegadas, cada uma ia para o seu lugar habitual e lavava a sua pedra, gasta pelo correr constante da água. Saias e mangas arregaçadas eram horas de começar. Lá vem o dia, preguiçoso ainda.
A menina sorri. Sente a frescura da água nas mãos pequeninas e diz: Vou pescar um peixinho! Mãe, empresta-me o cesto. Vou pescar um peixe para o jantar.
A mãe ri. Minha tontinha! Não vês que eles não se deixam apanhar? Ah, mãe!
Pego no cesto e, sem me afastar demasiado, vou à "pesca". As mulheres lavam. As crianças brincam, riem, molham-se, atiram-se para a água como se fosse o paraíso.
Sou imensamente feliz. Estou toda encharcada. Uma chinela solta-se-me do pé e vai, rio abaixo, arrastada pela corrente. Corro atrás dela a gritar e a rir. Magoo os pés nas pedras do leito mas não sinto nada. Alguém a apanha e ma entrega. Cuidado não a deixes ir embora senão vais descalça para casa. Não importa! Viro costas, pego no cesto e vou apanhar um peixinho para o jantar.
Era verão e a vida sorria.

Maria Videira (Mara Cepeda)

Era verão

Era verão e eu era menina muito pequenina.
O sol aquecia inclemente a terra árida, seca, quase estéril.
A menina que fui, brincava, sentada no meio do caminho, fazendo montinhos de pó.
Observava o que à sua volta se passava, serenamente... até que um sapo, carregado de ovos, corria no meio do verde das hortas.
De um ápice, ágil como uma gazela, corria atrás do pobre sapo que deixava metade dos ovos para trás.
Em simultâneo, um saltão cometia a imprudência de passar por ali. O sapo fugia o saltão era agarrado e acabava sem as pernas de saltar depois de muito sofrer às mãos da menina, como besta de carga das pequenas partículas de pó que ela tinha juntado no meio do caminho.
A mãe chamava e... Ah! Já vamos embora? Eu não brinquei nada mãe!
E a menina pequenina pegava na mão estendida e seguia, sentindo desta vez um calor diferente, mais cálido, mais terno.
Anda filha, vamos que já é tarde. Estou cansada mãe. A mulher pega na filha ao colo e vai, quase descalça, leve como uma borboleta. A filha dorme.
O verão mudou muito desde então.


Maria Videira (Mara Cepeda)

segunda-feira, 19 de novembro de 2012

Mar sem maresia

Dor humana,
Inconsciente dor.
Vegeta somente
Uma vida sem cor.

Na impossibilidade
De viver sem ideais
Há vazios
De acabar,
De preencher.

No vácuo que existe
Tão triste,
Vivem o negro,
Duro viver,
As toutinegras
Que não tentam ser.

Podem mover-se
Fingindo marés
Em prisão contida
Sem riso nem vida.
Vegetam somente
A pedir guarida.

Sem voz,
Na garganta enclausurada,
Rumorejam,
Não sabendo porque
A tristeza sobeja.

As coisas acontecem
Ohar sem ver
Olhar para mim
Apenas olhar
Tristeza sem fim.

Sem direitos seus,
Olhos vendados
É preciso ver sempre
Na mesma direcção.
Olhar prá frente
Para trás é que não!

É perder o norte
Sonhar ilusão.
Pressentir outras vidas
Aspirar vagos perfumes
De deusas iguais.

Ter nos teus braços
Sabores irreais.
Ser quem se é
Tentar até
Que a vida sorria
Fingindo, talvez,
Mar sem maresia.

Maria Videira

Senhora da Serra

O tempo anda chuvoso e carrancudo com alguns laivos sol. Deve ter sido influenciado pelos sentimentos de todos nós que, de alguma forma, vemos fugir o verão e antecipamos os dias mais curtos, as noites mais longas.
Aproxima-se, a passos largos, o inverno que o Outono tenta, em vão, retardar. Em Bragança, diz a sabedoria popular que, são três meses de inferno e nove meses de inverno. A realidade é que este ano, o vento tem sido uma constante, só que agora, é desagradável, frio até.  
A minha avó contava-me a história das Sete Senhoras Irmãs que se avistavam umas às outras e que falavam todas as manhãs. Eram elas a Senhora da Serra, em Bragança, no alto da Serra da Nogueira, a Senhora da Saúde de Vale de Janeiro, concelho de Vinhais, a senhora das Neves na Serra de Bornes, no concelho de Alfândega da Fé, a Senhora da Assunção em Vilas Boas, Vila Flor, a Senhora da Luz em Constantim e a Senhora do Naso no concelho de Miranda do Douro e, por último, a Virgem do Castelo, em Prenha, província de Salamanca, em Espanha, em frente a Peredo de Bemposta.
Diz a lenda que esta Virgem terá sido encontrada no rio Douro e que foi levada para o país vizinho, onde a colocaram virada para "nuestros hermanos", no entanto, ela acabava sempre, voltada para Portugal. Depois de muita insistência, ganhou a Santa e lá se encontra, virada para as suas irmãs. A minha avó tinha uma fé imensa em cada uma delas e a todas rezava, todos os dias.
As únicas que ela conhecia eram a Senhora da Serra e a Senhora da Saúde. Nunca, enquanto teve saúde, deixou de ir às suas festas e sofria grande desgosto por não poder visitar as outras Irmãs.
As pessoas da minha aldeia deslocavam-se a pé a estes dois santuários marianos. A Senhora da Serra exigia uma caminhada de mais de vinte quilómetros que eram feitos com muita fé e alegria. Rapazes e raparigas, homens e mulheres, percorriam os velhos caminhos de peregrinação, sem um queixume, apenas com uma fé inabalável nos desígnios de Deus. Era ali, que as raparigas ganhavam o dinheiro, vendendo as cestas, confecionadas, propositadamente para a ocasião, com que compravam vestidos e sapatos para a festa da Senhora da Saúde.
Este Santuário ficava muito mais perto da minha aldeia. Atravessava-se o rio, subia-se o monte e, em menos de três horas avistava-se a ermida. Era o culminar do verão pois, antigamente, a festa realizava-se em meados de setembro, depois da Senhora da Serra. Agora celebra-se no último domingo de agosto por causa dos imigrantes.
Todos os anos, desde que nasci e até ir para o Brasil, fui com a minha mãe à Senhora da Saúde. Não tenho lembrança consciente dessas aventuras mas, ao avistar a pequena capela branca no alto do monte, sinto uma nostalgia que não consigo explicar.
Estes sete santuários atraem, desde há muito tempo, muitos peregrinos. São locais de grande beleza que convidam à contemplação. O facto de estarem todos localizados no alto de montes e serras permite panorâmicas únicas.
Costumo dizer que a Senhora da Serra é a Senhora do vento. Nunca lá fui, fosse de verão ou de inverno, que não sentisse a força de Zéfiro, em todo o seu esplendor. Gosto da solidão que ali se vive, fora do tempo das novenas e das missas, onde o vento é rei e senhor daquele lugar.
Maria Videira